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A história de um país que quer existir - Eduardo Galeano (Carta Maior, 17.05.06)
A tragédia se repete, girando como um peão: há cinco séculos, a fabulosa riqueza da Bolívia amaldiçoa os bolivianos, que são os pobres mais pobres da América do Sul. ???A Bolívia não existe???: não existe para seus filhos. A análise é do escritor uruguaio Eduardo Galeano.
Eduardo Galeano
Uma imensa explosão de gás: esse foi o desfecho popular que sacudiu toda a Bolívia e culminou com a renúncia do presidente Sánchez de Lozada, que fugiu deixando atrás de si um rastro de mortos.
O gás iria ser enviado para a Califórnia, a preço ruim e a troco de mesquinhas regalias, através de terras chilenas que em outros tempos haviam sido bolivianas. A saída do gás por um porto do Chile colocou sal na ferida, em um país que há mais de um século vem exigindo, em vão, a recuperação do caminho para o mar que perdeu em 1883, na guerra vencida pelo Chile.
A rota do gás, no entanto, não foi o motivo mais importante da fúria que ardeu por todas as partes. Outra fonte essencial foi a indignação popular, que o governo respondeu a balas, como de costume, regando de mortos ruas e caminhos. As pessoas se indignaram porque se negaram a aceitar que ocorra com o gás o que antes ocorreu com a prata, o salitre, o estanho e todo o resto.
A memória dói, mas ensina: os recursos naturais não renováveis se vão sem dizer adeus, e jamais regressam. ..
Por volta de 1870, um diplomata inglês sofreu, na Bolívia, um desagradável incidente. O ditador Mariano Melgarejo lhe ofereceu uma taça de chicha, uma bebida nacional feita de raiz fermentada; o diplomata agradeceu, mas disse que preferia chocolate. Melgarejo, com sua habitual delicadeza, obrigou-o a beber uma enorme tigela quente de chocolate e depois o fez passear em um burro, montado ao contrário, pelas ruas de La Paz. Quando a rainha Victória, em Londres, tomou conhecimento do assunto, mandou trazer um mapa, colocou uma cruz de tinta sobre o país e sentenciou: ???A Bolívia não existe!???.
Várias vezes ouvi esta história. Ocorreu assim? Pode ser que sim, pode ser que não.
Mas a frase, atribuída à arrogância imperial, se pode ler também como uma involuntária síntese da atormentada história do povo boliviano. A tragédia se repete, girando como um peão: há cinco séculos, a fabulosa riqueza da Bolívia amaldiçoa os bolivianos, que são os pobres mais pobres da América do Sul. ???A Bolívia não existe???: não existe para seus filhos.
Na época colônia, a prata de Potosi foi, durante mais de dois séculos, o principal alimento do desenvolvimento capitalista da Europa. ???Vale um Potosi??? se dizia para elogiar algo que não tinha preço.
Em meados do século 16, a cidade mais populosa, mais cara e mais decadente do mundo brotou e cresceu aos pés da montanha da qual provinha a prata. Essa montanha, a chamada Cerro Rico, tragava os índios.
???Estavam os caminhos cobertos, que parecia que se mudava o reino??? escreveu um rico mineiro de Potosi: as comunidades se esvaziavam de homens, que de todas as partes marchavam, prisioneiros, rumo à boca que conduzia às escavações. Do lado de fora, temperatura de inverno. Dentro, o inferno. De cada dez homens que entravam, somente três saíam vivos. Mas os condenados à mina, que pouco duravam, geravam a fortuna dos banqueiros flamencos, genoveses e alemães, credores da coroa espanhola, e eram esses índios que possibilitaram a acumulação de capitais que converteu a Europa no que a Europa é.
O que obteve a Bolívia com tudo isso? Uma montanha oca, uma incontável quantidade de índios assassinados pelo cansaço, e uns tantos palácios habitados por fantasmas.
No século 19, quando a Bolívia foi derrotada na chamada Guerra do Pacífico, não só perdeu sua saída para o mar e ficou encurralada no coração da América do Sul. Perdeu, também, seu salitre.
A história oficial, que é a história militar, conta que o Chile ganhou essa guerra. Mas a história real comprova que o vencedor foi o empresário britânico John Thomas North. Sem disparar um tiro ou gastar um centavo, North conquistou territórios que haviam sido da Bolívia e do Peru e se converteu no rei do salitre, que era à época o fertilizante imprescindível para alimentar as cansadas terras da Europa.
No século 20, a Bolívia foi o principal abastecedor de estanho do mercado internacional.
As latas de sopa, que deram fama a Andy Warhol, provinham das minas que produziam estanho e viúvas. Nas profundidades das escavações, o implacável pó de silício matava por asfixia. Os operários apodreciam seus pulmões para que o mundo pudesse consumir estanho barato.
Durante a segunda Guerra Mundial, a Bolívia contribuiu para a causa aliada vendendo seu mineral a um preço dez vezes mais baixo do que o baixo preço de sempre. Os salários dos operários se reduziram a nada, houve greve, as metralhadoras cuspiram fogo. Simon Patiño, dono do negócio e senhor do país, não teve que pagar indenizações porque a matança por metralhadas não é acidente de trabalho.
À época, o senhor Simon pagava 50 dólares de imposto de renda, mas pagava muito mais para o presidente da nação e a todo seu gabinete. Ele havia sido um morto de fome tocado pela varinha mágica da fortuna. Suas netas e netos ingressaram na nobreza européia; casaram-se com condes, marqueses e parentes de reis.
Quando a revolução de 1952 destronou Patiño e nacionalizou o estanho, restava pouco mineral, não mais que restos de meio século de desaforada exploração a serviço do mercado mundial.
Há mais de 100 anos, o historiador Gabriel René Moreno descobriu que o povo boliviano era ???cerebralmente incapaz???. Ele havia posto na balança um cérebro indígena e outro mestiço e havia comprovado que pesavam entre cinco e dez onças a menos que o cérebro da raça branca.
Com o passar do tempo, o país que não existe segue enfermo de racismo. Mas o país que quer existir, onde a maioria indígena não tem vergonha de ser o que é, não culpa o espelho.
Essa Bolívia, farta de viver em função do progresso alheio, é o país de verdade. Sua história, ignorada, abunda em derrotas e traições, mas também em milagres dos quais são capazes de fazer os desapreciados, quando deixam de desapreciar a si mesmos e quando deixam de brigar entre si.
No ano 2000 ocorreu um caso único no mundo: uma população desprivatizou a água. A chamada ???guerra da água??? ocorreu em Cochabamba. Os camponeses marcharam desde os vales e bloquearam a cidade. A população apoiou. Foram atacados com balas e gases, o governo decretou estado de sítio. No entanto, a rebelião coletiva continuou, sem recuar, até que na investida final a água foi arrancada das mãos da empresa Bechtel. (A empresa, com sede na Califórnia, recebe agora um consolo do presidente Bush, que a premia com contratos milionários no Iraque.).
Faz alguns meses, outra explosão popular em toda Bolívia venceu nada menos que o Fundo Monetário Internacional. No entanto, o FMI vendeu caro sua derrota, cobrou mais de 30 vidas assassinadas pelas chamadas forças da ordem, mas o povo cumpriu sua façanha. O governo não teve outro remédio a não ser anular o imposto aos salários, que o FMI havia mandado aplicar.
Agora, é a guerra do gás. A Bolívia dispõe de enormes reservas de gás natural. Sanches de Lozada havia chamado de ???capitalização??? à sua privatização mal dissimulada, mas o país que quer existir acaba de demonstrar que não tem memória fraca. Outra vez a velha história de riqueza que se evapora em mãos alheias? ???O gás é nosso direito??? proclamam os panfletos e as manifestações. O povo exigia e seguirá exigindo, uma vez mais, que o gás seja posto a serviço da Bolívia, em lugar de a Bolívia se submeter, novamente, à ditadura de seu subsolo. O direito à autodeterminação, que tanto se invoca e tão pouco se respeita, começa por aí.
A desobediência popular fez a corporação Pacific LNG, integrada pela Repsol, British Gás e Panamericana Gas (que se supõe ser sócia da empresa Enron, famosa por seus virtuosos costumes) perder um valioso negócio. Tudo indica que a corporação viera com intenção de ganhar US$ 10 para cada dólar investido.
Por sua parte, o fugitivo Sánchez de Lozada perdeu a presidência. Seguramente, não perdeu o sono. Sobre sua consciência pesa o crime de mais de 80 manifestantes, mas essa não foi sua primeira carnificina e este porta-voz da modernização não se atormenta por nada que não seja rentável. Afinal, ele pensa e fala em inglês, mas não é o inglês de Shakespeare: é o de Bush.
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O artigo "El país que quiere existir", de Eduardo Galeano, foi publicado originalmente nos jornais Pagina 12 (Argentina), El Mundo (Espanha), e Bolpress (Bolivia). Tradução: Norian Segatto
Bolívia nacionaliza gás e petróleo
De forma inesperada o 1º de maio boliviano foi marcado pela ocupação, com tropas do Exército, das instalações da Petrobrás naquele país. A ação, que contou com a presença do presidente Evo Morales em uma das refinarias, marcou o início da nacionalização do gás e do petróleo. O vice-presidente boliviano, Álvaro García, disse que funcionários da estatal energética Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) e militares começaram a assumir o controle das 56 instalações petrolíferas. Recentemente a Central Obrera Boliviana (COB), uma das principais forças político-sociais, reclamava dos poucos avanços do governo na nacionalização dos recursos naturais. Paralelo às mobilizações de 1º de maio convocadas pelo Movimento ao Socialismo (MAS) - partido do presidente Evo Morales - a COB havia convocado uma mobilização para rechaçar "a negativa de Evo Morales em expulsar as transnacionais, nacionalizar sem indenização o gás e o petróleo e acabar com o domínio do neoliberalismo e proprietários de terras". Ainda não é possível avaliar o impacto da decisão do governo boliviano nas relações com a COB, que junto com as multinacionais foi pega de surpresa pelo decreto.
O governo brasileiro foi surpreendido e marcou uma reunião para a manhã de hoje, dia 02/05, terça feira, para avaliar que medidas tomar. A mídia brasileira e as forças de direita já deram indícios de que vão explorar o acontecimento para exigir do governo brasileiro algum tipo de retaliação. A situação promete ficar mais complexa já que logo após o decreto Evo Morales prometeu nacionalizar todos os recursos naturais do país: "Estamos começando a nacionalizar os hidrocarbonetos. Amanhã será a mineração, os recursos florestais. Serão todos os recursos naturais".
http://www.midiaindependente.org/pt/green/2006/05/352236.shtml
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Equador assume controle de petrolífera estadunidense
Agência Notícias do Planalto - 25/05/2006
A empresa estatal equatoriana Petroequador assumiu nesta quinta-feira (18) o controle de todos os campos da empresa petroleira estadunidense Oxy. O ministro de Energia do Equador, Ivan Rodrigues, anunciou a suspensão do contrato entre o governo e a empresa. A Oxy foi acusada de transferir ilegalmente os direitos de 40% do campo petrolífero para outra companhia, conhecida como Encana, mas as autoridades do Equador não foram informadas sobre a transação, e assim, a empresa feriu as leis nacionais.
A petrolífera dos Estados Unidos apresentou um recurso de intervenção internacional contra a anulação do contrato, mas advogados advertiram que essa ação não tem validade porque o documento exclui a possibilidade de intervenção quando a legislação nacional é violada. Especialistas políticos afirmam que esta decisão foi influenciada pela nacionalização de gás e petróleo pelo governo da Bolívia e a constante pressão social que mobilizou mais de cinco mil pessoas para exigir a suspensão do contrato nos últimos dias em todo o país. Com esta decisão o Equador se retira de maneira definitiva das negociações do Tratado de Livre Comércio com os EUA.
De Brasilia, da Agência Notícias do Planalto, Marina Mendes http://www.noticiasdoplanalto.net/images/stories/notplan/mp3/2006/maio/190506equador.mp3
"Crise do gás foi mais de política interna do que política externa"
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11210&editoria_id=6
Para o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, episódio da nacionalização do gás boliviano gerou, além de sentimentos xenófobos, uma crise de política interna muito mais do que de política externa. Ele avalia que governo brasileiro agiu corretamente, reconhecendo direito da Bolívia à soberania sobre seus recursos naturais e abrindo negociações.
Marco Aurélio Weissheimer - Carta Maior
PORTO ALEGRE - “As políticas executadas pelos governos neoliberais na América do Sul e na região amazônica não atingiam o cerne da questão econômica que consiste na construção e no desenvolvimento do mercado interno e no fortalecimento da coesão social. Fundaram suas esperanças em uma inserção retrógrada no mercado internacional, tentando uma volta aos ‘anos dourados’ da exportação de produtos primários e da fictícia estabilidade do padrão-ouro a partir de ‘novos’ avatares, como foi o ‘currency board’ (paridade fixa) argentino. A abertura radical de suas economias ao capital multinacional e as privatizações aceleradas causaram o enfraquecimento empresarial local e a desestruturação dos já frágeis Estados nacionais, gerando temporariamente, de outro lado, grandes ingressos de capital estrangeiro, o que os iludiu” (Samuel Pinheiro Guimarães, DESAFIOS BRASILEIROS NA ERA DOS GIGANTES, p.177, Editora Contraponto).
Essa passagem do recém-lançado livro do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário geral do Ministério de Relações Exteriores, indica a relação que há entre as escolhas internas de um governo e sua política externa. A maioria das críticas contra a política externa do governo Lula vem de setores que implementaram e defenderam com entusiasmo as políticas citadas pelo embaixador. É à luz, delas, portanto, que deve se procurar entender tanto as críticas quanto as orientações da política externa do atual governo. Em sua palestra, em Porto Alegre, Samuel Pinheiro Guimarães, procurou responder a essas críticas, abordando temas como a pretensão do Brasil de ocupar uma vaga no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), o projeto de integração da América do Sul, o estreitamento de relações com países da África, Ásia e Oriente Médio e, mais particularmente, o caso da nacionalização das reservas de gás e petróleo na Bolívia.
[...]
O CASO BOLÍVIA
No âmbito das reações a iniciativas de outros países, Guimarães analisou o caso da nacionalização das reservas de gás e petróleo, na Bolívia. Segundo ele, a repercussão no Brasil da decisão do governo Evo Morales foi um caso de política interna e não externa. “Houve claramente um esforço da oposição para desconstituir a política externa, considerada um dos pontos altos do governo Lula. Além disso, há um outro esforço em curso, em âmbito internacional, para tentar separar o Brasil da Venezuela”, observou. O embaixador lembrou que a questão do gás, na Bolívia, é muito mais antiga que o governo Evo Morales. O primeiro acordo sobre o gás boliviano data de 1938. E o acordo para a construção do gasoduto Brasil-Bolívia é de 1993. “Essa relação não foi criada pelo atual governo”, recordou. Inclusive, acrescentou, durante o governo Lula, os investimentos da Petrobras na Bolívia foram muito pequenos. “Não houve aprofundamento da dependência”, garantiu.
Além disso, prosseguiu, o contrato com a Bolívia prevê renegociação de preços a cada três meses e há uma cláusula que prevê a reformulação do sistema de preços a cada cinco anos e que, a qualquer momento, uma das partes pode propor revisão dos preços. Assim, observou, o governo boliviano estava amparado em termos legais. Quanto ao aumento de impostos, classificou como um ato de soberania. “Se ele convém aos nossos interesses ou não, isso é outro problema”. O que está ocorrendo na Bolívia, assinalou ainda Guimarães, é a afirmação dos movimentos indígenas após uma experiência de políticas neoliberais extremamente desastrosas. “É importante lembrar que, até 1952, havia um regime de servidão na Bolívia, onde as propriedades eram vendidas junto com os índios que as habitavam. E estamos falando de um país onde cerca de 66% da população é indígena e que elegeu um presidente indígena com ampla maioria no Parlamento”.
“Aqui no Brasil, gerou-se uma reação xenófoba, inclusive com alguns defendendo o uso da força. Foi uma crise de política interna muito mais do que de política externa. O governo brasileiro agiu corretamente, reconhecendo o direito da Bolívia à recuperação da soberania sobre seus recursos naturais e abrindo negociações. E elas avançaram. Haverá compensação por qualquer desapropriação e os preços serão renegociados. O que é surpreendente é que pessoas que pretendiam privatizar a Petrobras há pouco tempo tornaram-se ardorosos defensores da empresa”, ironizou o embaixador. Sobre as relações com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, Guimarães, além de apontar um esforço internacional para separar o Brasil daquele país, rebateu de modo expeditivo a idéia de que haveria uma disputa pela liderança na América do Sul: “O presidente Chávez tem a maior estima em relação ao Brasil e plena consciência do que nosso país representa”.
Petrobras entrega à Bolívia proposta final para vender refinarias
Interessante por conter os valores das refinarias: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u116878.shtml