DossiePCC
Para advogado do PCC, força policial não vai deter ataques (Reuters)
http://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2006/05/14/ult1928u1926.jhtm
Bagdá é aqui (Folha, 14.05.06)
OPINIÃO: Bagdá é aqui
WALTER FANGANIELLO MAIEROVITCH ESPECIAL PARA A FOLHA
O PCC (Primeiro Comando da Capital), desde fevereiro de 2001, declarou guerra ao Estado de São Paulo. Como as fundamentalistas organizações terroristas de matriz wahabita e também como as associações mafiosas, o PCC emprega a estratégia de atacar e de submergir. Em São Paulo, quando essa organização criminosa submerge, as autoridades saem a cantar vitórias e a passar uma falsa imagem de tranqüilidade para a população.
No seu primeiro grande ato de força, o PCC dominou 29 presídios em 19 cidades, manteve reféns, usou presos como massa de manobra, ridicularizou autoridades que sustentavam na televisão e nas rádios a sua inexistência e provocou 19 mortes.
Quando os cabeças do PCC, -custodiados em presídio de segurança máxima-, sentiram-se incomodados com as decisões do juiz-corregedor de Presidente Prudente, ordenaram, em março de 2003, a sua execução sumária. A sentença foi passada em estabelecimento prisional tido como de segurança máxima. O juiz Antonio José Machado Dias acabou fuzilado numa emboscada, logo depois de deixar o fórum.
Com a eliminação de Machado Dias, o PCC acabava de incorporar a máxima mafiosa, que continua a exibir: "Somos sempre os mais fortes". Essa organização mantém controle de territórios, dentro e fora dos presídios, difunde o medo e promove ataques surpreendentes e bem coordenados, como ocorreu de sexta para sábado. Pior, mantém uma rede tão ágil como as neuronais.
Ensina o magistrado Piero Grasso, procurador nacional antimáfia, que a palavra mágica para contrastar a criminalidade organizada é a coordenação. Na obra "La Máfia Invisibile", avisa: "Para coordenar de verdade, é necessário uma cabeça pensante, aquela que conta com todas as informações e meios à sua disposição, de modo a estar capacitada a imprimir as diretivas justas". Por aqui, o modelo federativo e as ambições políticas regionais desprezam a coordenação. Em São Paulo, como até as muralhas dos presídios sabem, as polícias Civil e Militar não se comunicam a contento. A Secretaria Nacional de Segurança Pública é um apêndice do Ministério da Justiça, com expressão meramente nominal.
Sem código penitenciário, fortalecimento da magistratura do Ministério Público, sistemas judiciário-policial eficaz e política criminal adequada a enfrentar o estruturado fenômeno da delinqüência organizada, não há esperanças. E PCC, Comando Vermelho, Terceiro Comando, Amigo dos Amigos, e outros, já transformaram-se num sistema de poder.
O PCC difunde violência e ousadia a partir dos presídios e da sua sinérgica rede de comunicação. Não se pode pensar em combatê-lo com eficácia só quando ele comete ações graves e espetaculares. Deve essa organização ser enfrentada de maneira ordinária, racional, organizada e sistêmica, isto é, de todas as formas e sempre dentro da legalidade.
Depois da nossa última madrugada de Bagdá, as autoridades do governo do Estado de São Paulo afirmaram, num repetido e surrado discurso, que esperavam pela reação do PCC. No entanto, não fizeram nada para se prevenir dos ataques nem avisaram à sociedade civil. Pelo que se sabe, os policiais que morreram não estavam alertados e os distritos policiais atacados, sem reforços.
Por último. Não se deve olvidar que a criminalidade organizada, que emprega como o PCC métodos terroristas e mafiosas, passe do ataque às autoridades de polícia às agressões aos civis inocentes. O governador Lembo deveria pensar nisso.
Walter Fanganiello Maierovitch, 59, preside o Instituto Brasileiro Giovanni Falcone, é professor de direito penal e, como especialista convidado, colaborou com a Convenção das Nações Unidas sobre Criminalidade Organizada.
"Acontecerá de novo", diz sociólogo francês
SÉRGIO DÁVILA, da Folha de S.Paulo, em Washington, 15/05/2006 - 09h31
Ataques como os do fim de semana devem ocorrer de novo e só podem ser evitados se as elites políticas brasileiras e o governo do país contra-atacarem no campo social, não no criminal. Polêmica, essa é a opinião de um especialista no assunto: Loïc Wacquant, 46, professor de sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley e pesquisador do Centro de Sociologia Européia em Paris.
Francês, ganhador do prêmio da Fundação MacArthur, o "prêmio dos gênios", ele estudou no Brasil as desigualdades sociais, o sistema carcerário e o judicial, visitas que renderam livros como "As Prisões da Miséria" (Jorge Zahar, 2001), "Punir os Pobres - A Nova Gestão da Miséria nos EUA" (Freitas Bastos Editora, 2001) e "As Duas Faces do Gueto" (sai em setembro pela Boitempo Editorial).
A seguir, os principais trechos da entrevista à Folha:
Folha - Por que a situação em São Paulo chegou a esse ponto?
Loïc Wacquant - Porque nas últimas décadas as elites políticas brasileiras têm usado o estado penal --polícia, tribunais e sistema judiciário- como o único instrumento não só de controle da criminalidade como de distribuição de renda e fim da pobreza urbana.
Expandir esse estado não fará nada para acabar com as causas do crime, especialmente quando o próprio governo não respeita as leis pelas quais deve zelar: a polícia de São Paulo mata mais que as polícias de todos os países da Europa juntos, e com uma quase impunidade. Os tribunais agem sabidamente com preconceito de classe e raça. E o sistema prisional é um "campo de concentração" dos muito pobres. Como você pode esperar que esse trio calamitoso ajude a estabelecer a "justiça"?
A manutenção do que chamo de estado penal só faz com que a violência institucionalizada alimente a violência criminosa e faça com que as pessoas tenham medo da polícia. Cria um vácuo que o crime organizado sabe muito bem preencher. Isso permite a eles que cresçam e sejam tão poderosos e ousados a ponto de desafiar abertamente o Estado e seu monopólio do uso da violência.
Folha - O sr. acha que os ataques acontecerão de novo?
Wacquant - Sim, pode-se prever que acontecerão de novo e de novo, pelo menos enquanto as elites políticas se recusarem a encarar de frente as desigualdades vertiginosas. Nenhuma sociedade democrática na face da Terra pode combater o crime apenas com seu aparato policial-judiciário.
Quais os remédios? Os de sempre: educação, emprego, seguro para os desempregados e uma rede social para os mais pobres. O Brasil paga com violência criminal sua recusa injustificável de encarar sua desigualdade social.
Folha - Uma política de "tolerância zero", a la Rudolph Giuliani quando prefeito de Nova York, poderia ajudar a resolver o problema?
Wacquant - Seria um erro duplo. Primeiro porque a queda espetacular do crime em Nova York não teve nada a ver com a política de "tolerância zero" de Giuliani, já estava em curso quando o prefeito apareceu na cena e acontecia em outras cidades norte-americanas e mesmo canadenses, em lugares que não aplicaram tal política. Segundo porque, no Brasil, aumentar o poder da polícia equivale a restabelecer a ditadura sobre os pobres e a destruir ainda mais as bases democráticas do Estado.
Folha - E a pena de morte?
Wacquant - Nunca teve efeito definitivo em crimes violentos em nenhum país, por que haveria de ter no Brasil? Por que bandidos profissionais, que estão na indústria da violência, temeriam a morte quando eles a vêem diariamente ao redor deles, quando eles matam e são mortos rotineiramente?
Folha - O sr. esteve no Brasil algumas vezes. Teve medo?
Wacquant - Estive sete vezes na última década. Percebi uma mudança significativa ao longo desse período, com o medo da violência crescendo e se espalhando. Se as elites não se movimentarem, esse medo jogará o país em um ciclo vicioso e mortal.
O presidente Lula declarou em Viena, no último fim de semana, que a causa da violência é a falta de programas sociais. Ele está certo, mas são só palavras. Agora, nós precisamos ver as ações, e elas estão no campo social, não no campo criminal.
Pânico no galinheiro
DEMÉTRIO MAGNOLI, COLUNISTA DA FOLHA, (Folha, 16.05.06)
O PCC deflagrou ontem a guerra da informação. Existiram, aqui e ali, disparos reais, mas sobretudo os bandidos dispararam aleatoriamente chamadas telefônicas ameaçadoras. BUUU! A cidade de São Paulo reagiu como um imenso galinheiro. Rumores correram soltos, desatando reações em cadeia. Sob o influxo do boato, comerciantes baixaram portas de aço, pais assustados correram às escolas para resgatar as crianças e empresas suspenderam o serviço. De um bairro a outro, a cidade apagou-se ao longo da tarde. Sarajevo, a capital da Bósnia-Herzegóvina, não renunciou à vida, nem sob sítio e debaixo das rajadas de franco-atiradores. Os mercados de Bagdá funcionaram em meio aos estrondos das bombas e mísseis dos ataques norte-americanos. Londres não parou durante os bombardeios aéreos alemães, na Segunda Guerra Mundial. Mas São Paulo curvou-se à delinqüência comum. Vergonha! A culpa é dos governantes? Sempre, em primeiro lugar, a culpa é deles. Atônitas, cercadas por numerosas assessorias inúteis, as autoridades estaduais e federais entregaram-se desde domingo ao jogo eleitoral, elaborando declarações maliciosas sobre seus adversários. Mas esses especialistas na baixa política não foram capazes de identificar o sentido da operação do PCC e, na prática, renunciaram a governar.
Na hora da primeira série de ataques coordenados, o governo do Estado de São Paulo tinha a obrigação de centralizar as forças policiais em um comando único de emergência. Em vez disso, talvez inspirado nas ações dos comandantes do Exército que, no Rio de Janeiro, firmaram um acordo fétido com o Comando Vermelho, ele preferiu iniciar negociações sigilosas com os chefes da delinqüência.
De nada servem um governador e um secretário da Segurança impotentes diante de uma guerra de rumores. Ontem, enquanto os cidadãos se acovardavam, os boletins de notícias desempenhavam involuntariamente o papel destinado a eles no planejamento dos bandidos. Mas não passou pela cabeça vazia das autoridades o recurso elementar de, usando a legislação disponível, colocar a TV e o rádio em rede oficial, por todo o tempo necessário, a fim de desfazer a boataria, chamar as pessoas à razão e impedir o cancelamento da vida normal.
A culpa é só dos governantes? Não, mil vezes não! São Paulo conheceu ontem os efeitos psicológicos da indústria do medo. A classe média que não deixa os seus filhos circularem de ônibus e metrô, que se cerca de câmeras e alarmes, que passeia apenas em shopping centers e aspira comprar um automóvel blindado correu na direção de seus bunkers domésticos murmurando tolices sobre a pena de morte. No começo da noite, um manto de silêncio desceu sobre a cidade. Vergonha!
O crime organizado e os bancos (Folha, 17.05.06)
LUÍS NASSIF
O crime organizado e os bancos
No ano passado, em um seminário sobre segurança pública, o economista Ib Teixeira (FGV-RJ) apresentou alguns números sobre o custo da violência no país. Suas conclusões são que, em 1995, a violência consumiu R$ 35 bilhões, ou 5% do PIB; em 2003, R$ 112 bilhões, ou 10,2% do PIB, Estimou em 15 mil o exército de bandidos, em 340 mil o número de residências desvalorizadas pelo crime, 1.000 km2 de áreas imobiliárias. Ao mesmo tempo, comparou as dotações orçamentárias entre 1993 e 2003, reflexo claro do que ocorreu no país no período. Dotações em queda aconteceram na Educação (-20%), na Saúde (-13%), nos Transportes (-61%), na Habitação (-84%), na Segurança Pública e Defesa Nacional (-9%). Subiram, o Legislativo (90%), o Judiciário (94%), Publicidade (435%), Relações Exteriores (4%) e Trabalho (1%). Daí o fato de a guerra ser basicamente econômica.
Em novembro do ano passado, ocorreu em Brasília uma reunião do Gafi (Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro), formado por representantes de 31 países e governos e duas organizações internacionais, que, desde 1990, estuda maneiras de articular ação conjunta contra o fluxo de dinheiro criminoso no sistema financeiro. Foi a partir dos trabalhos do Gafi que, anos atrás, foi criado o Coaf (Conselho de Controle das Atividades Financeiras). Mas muitas atividades continuam a ser exercidas a olho nu, especialmente em empresas "offshore", passando ao largo das recomendações do Gafi.
Em 2003, o Gafi emitiu 40 recomendações, não apenas em relação à lavagem de dinheiro mas ao financiamento do terrorismo. Essas recomendações são adotadas hoje em dia por mais de 130 países e se constituem no padrão de combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado. A primeira recomendação do Gafi é tratar penalmente a lavagem de dinheiro com os mesmos instrumentos jurídicos de crimes como o tráfico, mesmo que os crimes correlatos (os que geraram os fundos iniciais) estejam sujeitos a penas pequenas. Há um anteprojeto de Lei de Lavagem de Dinheiro que deve ser acelerado depois da hecatombe que sacudiu São Paulo.
Pelo documento, a questão do sigilo bancário não pode servir de impedimento às investigações. O sistema financeiro tem o dever de vigilância sobre seus clientes e de conservação de documentos. As instituições financeiras não devem manter contas anônimas nem sob nomes manifestadamente fictícios. Em relação a pessoas politicamente expostas, as instituições devem dispor de sistemas adequados de gestão de riscos, obter autorização da direção e verificar a origem do patrimônio ou dos fundos.
No caso de relações extra-fronteiras com bancos correspondentes, deveriam avaliar os controles a que o parceiro é submetido. O documento recomenda dever de vigilância especialmente em relação a cassinos (e casas de bingo), agentes imobiliários, negociantes de metas e pedras preciosas, advogados, notários, sempre que preparem operações para os clientes nessas áreas. As instituições deveriam recusar acordos com bancos de fachada, assim como negócios com países que não seguem as recomendações do Gafi. Documentos sobre o tema podem ser obtidos no site www.projetobr.com.br.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
A matança dos suspeitos
Fonte: Carta Maior / http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3199aria
Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança? Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo. Para morrer na lista dos suspeitos anônimos. Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes. Maria Rita Kehl Vamos falar sério: alguém acredita que a rebelião do PCC foi controlada pela polícia de São Paulo? Vejamos: as autoridades apresentaram aos cidadãos evidências de que pelo menos uma parte da poderosa quadrilha do crime organizado foi desbaratada? O sigilo dos celulares que organizaram, de dentro das prisões, a onda de atos terroristas no estado de São Paulo, Paraná, Mato Grosso, etc, foi quebrado para revelar os nomes de quem trabalhou para Marcos Camacho, o Marcola, fora da cadeia? Qual foi o plano de inteligência posto em ação para debelar a investida do terror iniciada no último final de semana?
Alguém acredita que "voltamos à normalidade?" Ou se voltamos pois a vida está mais ou menos com a mesma cara de antes, só um pouco mais envergonhada: de que normalidade se trata?
Uma normalidade vexada: uma vez constatada a rapidez com que os capitalistas selvagens do tráfico de drogas desestabilizaram o cotidiano do estado mais rico do Brasil, não dá mais para esconder o fato de que nossa precária tranqüilidade depende integralmente da tranqüilidade deles. Se os defensores da lei e da ordem não mexerem com seus negócios, eles não mexem conosco. Caso contrário, se seus interesses forem afetados, eles põem para funcionar imediatamente a rede de miseráveis a serviço do tráfico, conectada através de celulares autorizados pelo sistema carcerário (que outra explicação para a falta de bloqueadores e de detectores de metal nos presídios?) e toleradas pelo governador de plantão. No caso, o mesmo governador que, na hora do aperto, rejeitou trabalhar em colaboração com a Polícia Federal e, horas depois, negou ter feito acordos com os líderes do PCC. Segunda feira, nos telejornais, o governador Lembo nos fez recordar a retórica autoritária dos militares: nada a declarar além de "tudo tranqüilo, tudo sob controle". E quanto aos oitenta mortos (hoje são 115), governador? Ah, aquilo. Bem, aquilo foi um drama, é claro. Lamento muito. Mas pertence ao passado.
A falta de transparência na conduta das autoridades e a desinformação proposital, que ajuda a semear o pânico na população, fazem parte das táticas autoritárias do atual governador de São Paulo. Quanto menos a sociedade souber a respeito da crise que nos afeta diretamente, melhor. Melhor para quem?
Na noite de segunda feira, quando os paulistanos em pânico tentavam voltar mais cedo para casa, vi-me parada ao lado de uma viatura policial, em um dos muitos congestionamentos que bloquearam a cidade. Olhei o homem à minha esquerda e, pela primeira vez na vida, solidarizei-me com um policial. Vi um homem humilde, desprotegido, assustado. Cumprimentou-me com um aceno conformado, como quem diz: fazer o que, não é? Pensei: ele sabe que está participando de uma farsa. Uma farsa que pode lhe custar a vida.
De repente entendi uma parte, pelo menos uma parte, da já habitual truculência da polícia brasileira: eles sabem que arriscam a vida em uma farsa. Não me refiro aos salários de fome que facilitam a corrupção entre bandidos e PMs. Refiro-me ao combate ao crime, à proteção da população, que são a própria razão de ser do trabalho dos policiais. Se até eu, que sou boba, percebi a farsa montada para que a polícia fingisse controlar o terror que se espalhava pela cidade enquanto as autoridades negociavam respeitosamente com Marcolas e Macarrões, imagino a situação do meu companheiro de engarrafamento. Imagino a falta total de sentido do exercício arriscado de sua profissão. Imagino o sentimento de falta de dignidade destes que têm licença para matar os pobres, mas sabem que não podem mexer com os interesses dos ricos, nem mesmo dos que estão trancados em presídios de segurança máxima e restrições mínimas.
Mas é preciso trabalhar, tocar a vida, exercer o trabalho sujo no qual não botam fé nenhuma. É preciso encontrar suspeitos, enfrentá-los a tiros, mostrar alguns cadáveres à sociedade. Satisfazer nossa necessidade de justiça com um teatro de vingança. A esquizofrenia da condição dos policiais militares foi revelada por algumas notícias de jornal: encapuzados como bandidos, executam inocentes sem razão alguma para a seguir, exibindo a farda, fingirem ter chegado a tempo de levar a vítima para o hospital.
Isso é o que alguns PMs fazem na periferia, nos bairros pobres onde também eles moram, onde o desamparo em relação à lei é mais antigo e mais radical do que nas regiões mais centrais da cidade. Nas ruas escuras das periferias os PMs cumprem seu dever de vingança e atiram no entregador de pizza. Atiram no menino que esperava a noiva no ponto de ônibus, ou nos anônimos que conversam desprevenidos, numa esquina qualquer. No motoboy que fugiu assustado \226 quem mandou fugir? Alguma ele fez... Não percebem - ou percebem? - que o arbítrio e a truculência com que tratam a população pobre contribui para o prestígio dos chefes do crime, que às vezes se oferecem às comunidades como única alternativa de proteção.
Assim a polícia vem "tranqüilizando" a cidade, ao apresentar um número de cadáveres "suspeitos" superior ao número de seus companheiros mortos pelo terrorismo do tráfico. Suspeitos que não terão nem ao menos a sorte do brasileiro Jean Charles, cuja morte será cobrada da polícia inglesa porque dela se espera que não execute sumariamente os cidadãos que aborda, por mais suspeitos que possam parecer. Não é o caso dos meninos daqui; no Brasil ninguém, a não ser os familiares das vítimas, reprova a polícia pelas execuções sumárias de centenas de "suspeitos". Mas até mesmo os familiares têm medo de denunciar o arbítrio, temendo retaliações.
Aqui, achamos melhor fingir que os suspeitos eram perigosos, e seus assassinatos são condição na nossa segurança. Deixemos o Marcola em paz; ele só está cuidando de seus negócios. Negócios que, se legalizados, deixariam o campo de forças muito mais claro e menos violento (morre muito mais gente inocente na guerra do tráfico do que morreriam de overdose, se as drogas fossem liberadas - disso estou certa). Mas são negócios que, se legalizados, dariam muito menos lucro. O crime é que compensa.
Então ficamos assim: o estado negocia seus interesses com os do Marcola, um homem poderoso, fino, que lê Dante Alighieri e tem muito dinheiro. Deixa em paz os superiores do Marcola que vivem soltos por aí, no Congresso talvez, ou abrigados em algumas secretarias de governo. Deles, pelo menos, a população sabe o que pode e o que não pode esperar. E já que é preciso dar alguma satisfação à sociedade assustada, deixemos a polícia à vontade para matar suspeitos na calada da noite. Os policiais se arriscam tanto, coitados. Ganham tão pouco para servir à sociedade, e podem tão pouco contra os criminosos de verdade. Eles precisam acreditar em alguma coisa; precisam de alguma compensação. Já que não temos justiça, por que não nos contentar com a vingança? Os meninos pardos e pobres da periferia estão aí pra isso mesmo. Para morrer na lista dos suspeitos anônimos. Para serem executados pela polícia ou pelos traficantes. Para se viciarem em crack e se alistar nas fileiras dos soldadinhos do tráfico. Para sustentar nossa ilusão de que os bandidos estão nas favelas e de que do lado de cá, tudo está sob controle.
Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na cultura".
Reação da polícia à ação do PCC foge do controle
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11166
'SP pode viver crise de governabilidade', diz FT
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/05/060518_pressreviewbg.shtml
PCC, Estado e emergências fascistas 2
Não foi somente mais uma rebelião nos presídios. Há algum tempo já não se trata mais disso. No dia 11 de maio, quinta-feira, três dias antes do dias das mães, começou uma rebelião em favor de benesses à elite do PCC (Primeiro Comando da Capital ou Partido do Crime), e acertos de contas com o governo paulista e sua polícia, terminando na segunda-feira, 15 de maio, após mortes, incêndios, paralizações forçadas de escolas a empresas, boatos e mais boatos, e negociações concluídas com ordem passada pelo PCC a todas as prisões rebeladas para /voltarem à normalidade/.
Tudo começou em São Paulo e rapidamente se espalhou para outros estados (Mato Grosso, Espírito Santo, Paraná). Desta vez a rebelião não se restringiu às prisões de adultos na capital ou no interior. Ela vazou. Atingiu a Febem-SP e atravessou as cidades realizando execuções de policiais, incendiando ônibus, demonstrando força amedrontadora aos cidadãos apavorados.
A metrópole parou na tarde de 15 de maio. As pessoas corriam para suas casas e punham-se diante dos televisores ouvindo representantes governamentais, intelectuais, coordenadores de ONGs, /anchor-men/ esbaforidos, todos querendo mais punições, mais reformas penais e medidas enérgicas contra o /crime /organizado. Eles quase pediram pena de morte quando exigiram prisão perpétua para encarcerar /bandidos perigosos/ para sempre.
Com tamanho autoritarismo, muitas vezes travestido de defesa do bom cidadão, eles fortalecem a emergente configuração atual em que presos organizam-se numa estrutura análoga à do Estado, mas ilegalmente. Como velhos ressentidos estes paladinos da justiça não se cansam, também, de acusar os defensores dos direitos humanos como responsáveis pelo atual estado de ilegalismos, confundindo, propositalmente, a atuação destas organizações que combatem pocilgas com proteção ilegal a criminosos. Aproveitam-se da situação para apavorarem mais ainda os espectadores e os navegadores de internet, identificando uma força a ser abatida, e pretendendo limpar o terreno para a continuidade dos fascismos. Eles pedem que o totalitarismo do PCC seja enfrentado pelo fascismo de Estado. Entretanto, no meio disso tudo aparecem as vozes equilibradas, os perfis democráticos, os planejadores de uma novo sistema em nome da justiça e da democracia. Reabre-se, então, o banquete de ONGs e institutos que vivem das desgraças da prisão propondo novidades por meio de propostas justas, na justa medida em que consagram o controle unificado, a coordenação institucional ou a fiscalização mútua.
Noutras ocasiões o PCC fazia rebeliões para afirmar seu poder diante dos prisioneiros buscando acabar com a luta pela hegemonia entre as diversas /facções organizadas/. Mostrava força internamente numa guerra objetiva, ao mesmo tempo em que iniciava tentativas de gestões diplomáticas com o Estado. Agora, controlando as prisões - a grande massa encarcerada cuja maioria se encontra em São Paulo -, já estabelecido na Febem e articulado com os cidadãos livres (ex-prisioneiros, parentes de encarcerados, novos /militantes/) ele quer mais. O PCC busca legitimidade deflagrando uma iminente guerra e a suspendendo mediante negociações. Ele diz, à sua maneira, quantas organizações legais precisam de seu ilegalismos para continuar lucrando.
O PCC não pratica terrorismo. Ele procura uma via institucional para estruturar a representação ou o comando militar sobre a população encarcerada (seja ela composta exclusivamente de prisioneiros ou ampliada, com funcionários e técnicos, pois não há prisão em que prisioneiros e seus controladores não estabeleçam relações ilegais com ou sem telefones celulares). Não há crime sem legalidade e empregos úteis, sabemos há muito tempo! Mas a quem interessa a revelação dos legalistas que atuam neste fluxo de ilegalismos?
No início da noite de segunda-feira, depois de encerradas as negociações, as autoridades governamentais diziam que tudo estava sob controle. As autoridades intelectuais, pela televisão e imprensa, falavam de mais reformas no sistema penal, sobre a necessidade de ações enérgicas, como foram usadas as comunicações para propagar boatos, e mais uma outra vez de tolerância zero. O PCC avisou que faria uma ação em mais de um estado da federação e fêz. Exigiu negociações com governos e as obteve. Comprometeu-se a encerrar as rebeliões e cumpriu. E ainda chamam o PCC de integrante do crime organizado? E ainda acham que é em nome do combate ao PCC que se deve investir mais em segurança?
O PCC mostrou que já é um Estado que governa sua população em diversos territórios de aprisionamentos chamados prisões, /febems/, favelas e periferias, nos bairros, cidades e estados, independentemente de continuidades fronteiriças. O PCC está organizado de maneira centralizada como um partido único e governa determinando ações descentralizadas visando a garantia de sua elite governamental e de seus súditos encarcerados. O PCC funciona por meio de pagamento de /impostos/, recrutamento de homens-bomba (não similares aos terroristas mas devedores que saldam dívidas atuando como sicários), articulação de milícias, tráfico de drogas, incluindo suas imediatas conexões legalizadas, retemperando as ilegalidades e escravizando seus devedores.
O Estado totalitário PCC assenta-se em dispositivos estratégicos bélico-diplomáticos, estruturados em um discurso familiar cujo ápice de sua consecução e execução está nas cabeças cortadas exibidas como troféus. Este é o expediente reservado aos traidores do partido. As degolas escancaram definitivamente a rigidez hierárquica combinada com afetuosas familiaridades que agregam /irmãos/ e /primos/, circunscrevendo a obediência diante da autoridade superior para obter proteção e propagar assujeitamentos.
O PCC como Estado, que já pacificou as prisões com muita guerra, com seu estatuto e estrutura militarizada, exige paz no exterior, mostrando sua força com atos de violência que ensaiam uma guerra. O Estado legal e legítimo só têm uma maneira de lidar com este Estado totalitário: fazer negociações circunstanciais ou simplesmente dizimá-lo. A guerra e os novos tratados de paz já ultrapassaram os muros das prisões, avançaram sobre as periferias das grandes cidades e encontraram fluxos ilegais em ramos respeitosos da economia.
Não se acaba com o tráfico com mais repressão. Já constatamos isso nos últimos 20 anos, desde que se tentou justificar a ação internacional contra o narcoterrorismo e o narcotráfico na América Latina, Ásia e Oriente Médio. Muito menos com tolerância zero ou penas alternativas. Estas somente propiciaram o crescimento estatístico dos indivíduos penalizados, das ações criminalizáveis e da burocracia penal. Hoje em dia, quando nem o Exército controla o seu monopólio legal de armas, a indústria do controle do crime cresce e com ela os /lavadores /de dinheiro, as conexões ilegais, idem. Idem, idem, idem.
O fluxo moralista-repressor aumenta de velocidade e de densidade. Não se fala mais em liberar as drogas, este golpe mortal nos ilegalismos atuais que passam pelas prisões para adultos e jovens definitivamente conectadas, pelos vínculos ilegais reconhecidos como inevitáveis e pelas propostas fascistas constatadas no cotidiano das mídias. No horizonte só mais guerras em cujos percursos encontraremos emboscadas, ciladas, silenciosos extermínios e prováveis reaparições de /esquadrões da morte/.
Na era da globalização transita quem manda e pode, como sempre foi no capitalismo, sob o Estado-nação ou o vigente consórcio de Estados. As mães continuarão chorando lado a lado, num soturno velório. Uma sobre o esquife do filho policial; a outra sobre o do seu filho /bandido/. Ambos vindos do mesmo lugar: um tido como /sangue bom/; outro como /sangue ruim/. A dor aumenta, o sangue quente escorre, encharca nossos pés. Isto não se sente pela televisão ou rádio. É a vida nos campos de concentração que precisa continuar para que os ilegalismos dos bacanas não cessem. Nunca houve capitalismo sem ilegalismos e o PCC é somente um parceiro ilegal no capitalismo no Brasil. Será que só no Brasil?
Governo afirma que todos tinham ligação com o PCC, mas não divulga nomes (Folha, 17.05.06)
Na guerra declarada à facção criminosa PCC, a polícia de São Paulo matou 71 pessoas. Apenas entre a noite de segunda-feira e a manhã de ontem, em cerca de 12 horas, foram 33 mortes.
Apesar de não revelar a identificação dos mortos, a Secretaria da Segurança Pública afirma que todos eles tinham ligação com o grupo criminoso ou estavam relacionados diretamente aos atentados nos últimos dias.
Na noite de segunda, quando o comandante-geral da PM, coronel Elizeu Eclair Teixeira Borges, fez um pronunciamento em que pediu calma à população, o número de pessoas mortas sob a acusação de participação em ataques às forças de segurança era de 38. De segunda para terça, em pouco mais de 12 horas, houve um aumento de 87% nas mortes cometidas pelas polícias em todo o Estado de São Paulo.
Ainda segundo o governo, até segunda-feira 91 pessoas haviam sido presas por suspeita de ligação com a onda de violência; ontem, esse número era de 115. Isso significa que as polícias, em apenas 12 horas, realizaram 21% do total de prisões efetuadas em todos os dias anteriores de violência (sexta, sábado, domingo e segunda), enquanto as mortes subiram 87%.
Segundo a contabilidade oficial, os mortos já chegam a 115 (71 acusados de ligação com a facção, 23 PMs, seis policiais civis, três guardas municipais, oito agentes penitenciários e quatro cidadãos). Em rebeliões, houve 17 mortos, o que totaliza 132.
Desde domingo, a Folha pede à Segurança Pública a lista completa com os nomes e a ficha criminal das pessoas que, segundo o próprio órgão, tinham participação nos ataques e foram mortas pela polícia. Até a conclusão desta edição, a resposta foi a mesma: "Estamos consolidando os dados, que serão divulgados em breve".
Ontem, a reportagem pediu um pronunciamento do secretário da Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, sobre a letalidade policial. Segundo seus assessores, ele não falaria sobre o aumento de mortos pelas polícias "para evitar o uso político de uma fala dele".
Até agora, passadas mais de 24 horas após o PCC ter determinado, de dentro de prisões de segurança máxima e com o uso do telefone celular, o fim da afronta ao Estado, a Segurança Pública não responde também às seguintes questões: o local exato de cada uma das 71 mortes nos "confrontos", como elas ocorreram, se os feridos pela polícia foram encaminhados a hospitais ou se os corpos ficaram nos locais dos embates para a realização de perícia, quantas armas de policiais e de acusados foram apreendidas para exame de balística e a ficha de antecedentes criminais dos mortos.
Na madrugada, às escuras
Durante a madrugada de ontem, a Folha percorreu todas as regiões da capital e parte da região metropolitana. Em muitos lugares, principalmente na zona norte, onde existe uma grande concentração de casas de PMs, vários carros da corporação estavam totalmente apagados, o que contraria o regulamento dos policiais. Apesar dos 33 mortos em "confrontos", a reportagem não conseguiu chegar a tempo para fazer imagens dos corpos das vítimas em nenhum dos casos. Somente no bairro de São Mateus, na zona leste, entre as 22h15 de segunda e as 3h de ontem, cinco pessoas "que teriam reagido à abordagem", segundo homens da PM, foram mortas. Em Osasco (Grande São Paulo), dois acusados de atirar contra o fórum da cidade também foram mortos pela PM. Outros dois, que teriam jogado uma granada contra uma base comunitária da PM, foram perseguidos e baleados na vizinha Carapicuíba; um deles morreu. A Rota matou outros dois homens em Guarulhos. Eles estariam com coquetéis molotov.
Para o professor da faculdade de direito e diretor clínico do Programa de Direitos Humanos da Universidade de Harvard, James Cavallaro, 43, "apesar de a polícia ter sofrido os ataques terríveis dos últimos dias, isso não dá carta branca para matar quem quiser e como quiser".
Segundo Cavallaro, que dirigiu no Brasil durante sete anos a Human Rights Watch, vários colegas de universidade, uma das mais importantes do mundo, têm perguntado sobre o ocorrido em São Paulo nos últimos dias, mas não conseguem entender completamente os crimes ligados ao PCC.
"Todos esses casos de morte, os cometidos pelo PCC, assim como os cometidos pelas forças de segurança, precisam ser investigados. O sentimento de vingança é normal. As forças da lei não podem agir com espírito vingativo. É preciso ficar dentro da lei, mesmo em tempos difíceis. Caso contrário, a polícia vira mais uma quadrilha, uma gangue, um grupo armado agindo sem lei", disse Cavallaro.
Segundo o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo César Pinho, "o Ministério Público não compactua com execuções sumárias e os excessos das corporações serão investigados".
Colaboraram RACHEL AÑON, MARTHA ALVES e DEH OLIVEIRA, da Agência Folha, e FABIANE LEITE, da Reportagem Local
Estágio do PCC é "pré-mafioso", diz analista (Folha, 17.05.06)
Especialistas afirmam que demonstrações de poder e entrelaçamento com setores do Estado aproximam facção da Máfia e dos cartéis
Estágio do PCC é "pré-mafioso", diz analista
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1705200643.htm
Blindados, festas, comida no lixo... (Folha, 17.05.06)
Meu dia de periferia
O high society paulistano viveu seu dia de periferia na segunda-feira, 15. Toques de recolher espontâneos, bandidos por perto, pânico nas ruas. Foi um choque.
"Me deu um ataque de fúria", diz Attílio Baschera, dono de um antiquário e figura das mais queridas do circuito Jardins/Higienópolis/Morumbi. "São Paulo vai virar o quê, uma Bagdá?". Indignado, Attílio passou e-mail a 50 amigos conclamando todos para um protesto. "Se podemos fazer passeata gay na avenida Paulista, se podemos permitir também vandalismos depois de jogos de futebol, na mesma avenida, por que não podemos organizar uma grande passeata de protesto contra a corrupção e ineficiência de nossos dirigentes?!?!?!".
Até ontem, o resultado da iniciativa não tinha sido muito animador: ninguém havia aderido à possível passeata. Rosângela Lyra, que comanda a Dior no Brasil, por exemplo, repassou o e-mail a amigos e embarcou para Nova York.
Attílio não desanima. "É um pensamento meio revolucionário: precisamos aguçar, chacoalhar as pessoas para uma atitude mais drástica", diz ele, que ainda sonha em "colocar 2 milhões de pessoas na Paulista".
Uma locadora de veículos em Moema informava que quase dobrou o número de locações de carros blindados de luxo na segunda: passou de cinco (a média normal) para nove. Os modelos mais procurados foram o Passat e o Omega -a 1.000 cada 24 horas.
A rotina de festas nos bairros nobres se alterou de forma radical. Às 16h da segunda, com 40 rebeliões em curso em presídios e dezenas de pessoas morrendo nas ruas, o consultor de etiqueta Fábio Arruda concluiu que o melhor a fazer era adiar a festa de seu aniversário, que seria comemorada em um restaurante dos Jardins. "A cidade estava um caos e era a hora do "dá ou desce". Resolvi descer, para não começar a chorar. Desmarquei a festa. Não havia clima!"
Arruda foi à luta. "Armei uma pequena operação de guerra", diz. Ligou para socialites como Betty Szafir e Cecília Neves e pediu ajuda para avisar os 200 convidados de que naquele dia não teriam festa. "O problema é que muitos celulares não funcionam. Está um inferno!", desabafava ele, no meio da operação-desmonte. "A meia dúzia que eu avisei me disse que já não ia mesmo, porque estava com medo", diz a amiga Betty Szafir, que passou o dia trancada em casa, nos Jardins.
E lá se foram para o lixo os 40 arranjos de orquídeas que decorariam a festa de Arruda, assim como grande parte do "arroz de puta rica", recheado com frutos do mar. As garrafas de champanhe, que já estavam no gelo, foram salvas -ficarão para a próxima segunda, para quando foi transferida a comemoração.
Já os 36 kg de patê (fígado, "egg salad", coalhada) seriam jogados fora. "Não dá para guardar. Vai estragar!", desabafava Arruda. "Pedi dois motoristas emprestados de minhas amigas para levar os docinhos [são 1.600, fora o bolo de oito quilos] para instituições de caridade." Outro problema: "Trouxe para o restaurante 350 hipopótamos [bonecos de vários tamanhos, de sua coleção particular]. Precisei de um caminhãozinho e agora terei que levar tudo de volta!"
Eram também 16h quando, no Alto de Pinheiros, o arquiteto Marcelo Faisal, também com festa de aniversário marcada, deu a ordem: "Cancela tudo!". "Realmente, hoje não é dia de festa, né? É um dia triste", comentava com a coluna, por telefone, interrompendo para atender o celular: "Oi, Dé! Cancelei, tá? É... Vamos marcar para quinta-feira".
"Tô" exausto de ficar ao telefone! Imagina, desmarcar com 150 convidados. É super desagradável!", dizia. "E o "TV Fama" vinha, o [apresentador da TV Gazeta] Rammy vinha... É muito chato", contava Faisal. E, atendendo outro "desconvidado" ao celular: "Quero fazer a festa na quinta. Mas vai depender desse estresse da cidade".
O prejuízo "é pequeno, mas existe", segundo Faisal. Dos 72 litros de sopa e macarrão, grande parte seria jogada fora. "Estou superchateado". As guarnições da massa, como o champignon de Paris, foram levados por funcionários, que, sem ônibus, partiram para a casa nos carros do bufê.
Foram dezenas de eventos cancelados. O promoter Cacá Ribeiro, um dos organizadores da inauguração do Salão de Festas da Casa Cor, no Jockey, adiou sua festa. "Super chato, né? O problema é que, em uma festa grande, para 1.500 pessoas, não dá para desconvidar todo mundo. Então colocamos umas duas ou três pessoas na porta do Jockey". Quem chegava recebia o aviso de cancelamento e um docinho como consolo.
Foram distribuídos para funcionários ou jogados no lixo os 30 arranjos de orquídeas e as dezenas de bem-casado.
Mídia espalha o medo em São Paulo
No último fim de semana, os meios de comunicação de massa divulgaram incessantemente os ataques que ocorreram em São Paulo, capital e região. Ônibus queimados, bancos destruídos e distritos e viaturas policiais metralhadas foram as imagens repetidas massivamente. Os ataques foram atribuídos à organização carcerária Primeiro Comando da Capital (PCC), como ação conjunta às rebeliões em diversas cadeias do estado. O resultado foi o aumento da vigilância policial e o medo disseminado, legitimando ações intensivas da polícia, assim como toques de recolher e fechamento das atividades normais do dia-dia.
Além do bombardeamento de imagens repetidas nos canais abertos, inúmeros boatos foram espalhados ao longo desta segunda (15/5), como uma explosão em uma loja das Casas Bahia e ataques com metralhadora no metrô Paraíso e na PUC. Um pânico geral foi criado, parecido com aquele do terrorismo que tanto perturba os norte-americanos, forçando uma interpretação limitada dos fatos sociais e políticos, reduzindo-os à dicotomia do bem e do mal para defesa de um modo de vida baseado na marginalização dos indivíduos e imposição de padrões de consumo irracionais. É a reação violenta à violência constitutiva da sociedade.
http://www.midiaindependente.org/pt/green/2006/05/353354.shtml
(© Copyleft http://www.midiaindependente.org: É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.)
Atentados contra a força policial em SP
Desde sexta-feira, 115 pessoas morreram no Estado de São Paulo. O motivo desse recorde é a série de ataques a bases policiais promovida pela organização carcerária Primeiro Comando da Capital (PCC), em reação à transferência de seus líderes para a carceragem do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), em São Paulo, e de cerca de 700 presos ligados ao PCC para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau. Além dos ataques às forças policiais o PCC organizouataques à ônibus, à agências bancárias e uma mega-rebelião em 67 penitenciárias e centros de detenção.
A Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar do Estado de São Paulo está redigindo um documento para ser enviado ao governador Cláudio Lembo, pedindo a demissão dos secretários de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, e de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa. O presidente da Associação, cabo Wilson Morais, classificou como irresponsável a atitude dos dois secretários que, segundo ele, sabiam da possibilidade dos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) às bases e delegacias e não alertaram a tropa. O governo alega ter alertado a tropa e que isso evitou mais mortes. O advogado do PCC Anselmo Neves Maia declarou que demonstrações de força da polícia e do governo de São Paulo serão insuficientes para deter a onda de ataques. Segundo ele o combustível dessas ações "têm origem na miséria e no descaso com os pobres, com falta de investimento em educação, saúde. E tem origem também no tratamento que os presos recebem".
http://www.midiaindependente.org/pt/green/2006/05/353303.shtml
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Burguesia terá de abrir a bolsa, diz Lembo (Folha, 18.05.06)
Em entrevista à Folha, governador relaciona quadro social a ataques e afirma que mentalidade da minoria branca do Brasil tem de mudar
Burguesia terá de abrir a bolsa, diz Lembo
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1805200608.htm
"Estão escondendo os corpos porque é tudo execução"
http://noticias.uol.com.br/ultnot/brasil/2006/05/19/ult2041u173.jhtm Bia Barbosa - Carta Maior
Em entrevista à Carta Maior, o escritor Ferréz denuncia onda de matança na periferia: "Estão escondendo os corpos porque é tudo execução, com tiro na cabeça. Hoje os policiais estão desfilando aqui na rua com touca ninja e camisa Le Coq, que é um grupo de extermínio da polícia"
SÃO PAULO - O balanço divulgado na noite de quinta-feira (18) pela Secretaria de Segurança Pública do governo de São Paulo totaliza em 152 o número de mortos na onda de violência que atingiu o estado na última semana. Destes, 107 foram mortos pela polícia em supostos confrontos. Muitos ainda não tiveram seus nomes divulgados e dezenas de corpos estão no IML (Instituto Médico Legal) a espera de identificação. Na quarta-feira, tiveram início as primeiras denúncias de que a polícia estaria cometendo abusos no combate aos ataques do PCC, o Primeiro Comando da Capital. Casos que começaram a estampar as páginas dos jornais e que agora não pararam de chegar às organizações de defesa dos direitos humanos.
Na quinta-feira, o escritor Ferréz fez um apelo à população em seu blog, para que todos ajudassem a divulgar que "a Policia Militar e a Policia Civil, afetadas com a onda de matança, estão fazendo da nossa periferia um estado pra lá de nazista". "Não está acontecendo confronto, e isso é uma prova que todos vão ter em alguns dias, quando a mídia começar a ir atrás de novas notícias e decidir falar a verdade. Não adianta ofender, não adianta ameaçar, a boca só se cala quando a guerra não for injusta", escreveu.
Reginaldo Ferreira da Silva - o nome literário é uma homenagem a Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (Ferre), e a Zumbi dos Palmares (Z) - nasceu no Capão Redondo. O bairro, na Zona Sul de São Paulo, é considerado uma das regiões mais violentas da capital. Filho de um motorista e de uma empregada doméstica, ele escreveu os primeiros versos aos sete anos de idade. Trabalhou como chapeiro numa lanchonete, balconista em bar e padaria, foi vendedor ambulante de vassouras e auxiliar-geral numa empresa metalúrgica antes de publicar suas primeiras obras. É autor de Fortaleza da Desilusão, Capão Pecado e Amanhecer Esmeralda. Em 1999, fundou a 1DASUL, um movimento que promove eventos culturais em bairros da periferia. E, em 2001, lança a revista Literatura Marginal, em parceria com a revista Caros Amigos, que recebe o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de Melhor Projeto de Literatura.
Firme e forte, como "um elo da corrente", como ele sempre escreve, Ferréz concedeu à Carta Maior a entrevista abaixo:
Carta Maior - Você denunciou em seu blog que a polícia matou quatro jovens inocentes esta semana no Capão Redondo. Como isso aconteceu?
Ferréz - Todos os dias de manhã, eu vou a um bar tomar café. O bar fica em frente a uma pequena loja de camisetas que eu tenho lá na rua. Todos os dias eu via esses meninos lá. Um deles vendia flor, o outro, produtos de limpeza. Estão sempre lá tomando café também antes de irem trabalhar. Na segunda-feira, cheguei no bar e estava um movimento estranho. E aí me falaram que os caras tinham atirado nos meninos no domingo à noite. Eles estavam tomando cerveja numa barraca de lanches. Isso foi numa rua próxima, onde todo mundo sempre vai. Um lugar conhecido no bairro. Chegou um carro preto - alguns moradores disseram que viram uma viatura também -, desceram cinco homens de touca ninja e atiraram nas pessoas na barraca. Até o dono foi alvejado. Quatro morreram e três estão no hospital ainda. Um se chamava Maurício e o outro, Brigadeiro. Mas a polícia não divulgou ainda o nome dos mortos. O mais velho tinha 27 anos e nenhum estava envolvido com o crime. Dos três que estão hospitalizados, nenhum tinha passagem pela polícia. No Parque Ipê, que é uma favela, colocaram fogo na moto de um menino que entregava pizza. Ele também morreu. Invadiram as casas das pessoas, uma por uma. Invadiram as casas no meio da madrugada.
CM - Nesta quinta-feira, a polícia realizou uma operação com 400 homens na favela do Elba, usando um mandado coletivo de busca. O que você acha dessas operações?
Ferréz - O estranho disso tudo é que não foi a população que declarou guerra à polícia militar. Foi o PCC. E quem está pagando é a população. A polícia recebe coação há tempos dos bandidos; ela criou este estado. E agora está guerreando com isso, porque solta as pessoas com alto grau de periculosidade. E quem paga é o povo, porque o cara do PCC não fica moscando na rua de bobeira. Aí a polícia pega o popular, confunde com outra coisa, e ripa o pessoal da favela. Tinha que ter mandado coletivo em Brasília, porque lá já foi provado que as pessoas são criminosas. Mas é mais fácil entrar na casa da população e bater num pobre do que olhar no olho de um ladrão, porque eles tremem quando isso acontece.
CM - Tremem por quê? Você acha a polícia despreparada?
Ferréz - A polícia tem vontade de fazer alguma coisa e acaba fazendo com as pessoas, por despreparo dos policiais. As pessoas que estão morrendo agora não são culpadas. Me revoltei por isso. Por que é assim, matou e enterrou? A vida do cara é isso? Espera aí! O cara foi assassinado e isso não vai ser investigado porque ele é pobre? A polícia científica esteve no lugar em que os meninos morreram e começaram a perguntar pras pessoas se eles eram "nóia". Ou seja, estavam procurando alguma razão pra justificar depois as mortes. Este é o único país em que o morto é culpado. Você morre e ninguém investiga. Estamos recebendo várias cartas de outras pessoas denunciando isso. Não é possível que todos estejam mentindo. Não é possível que fique assim. Estão escondendo os corpos porque é tudo execução, com tiro na cabeça. Hoje os policiais estão desfilando aqui na rua com touca ninja e camisa Le Coq, que é um grupo de extermínio da polícia.
CM - Mas não é de agora que há denúncias de grupos de extermínio agindo na periferia com a participação de policiais. Em que a situação atual diferente da de antes?
Ferréz - Apanhar da polícia não é novidade. A polícia sempre pega as pessoas, bate, espanca, não acha nada e fica nervosa. A PM pega as pessoas e diz que elas são lixo, dão bronca porque não têm roupa, porque estão "desarrumados". Muitas pessoas acham isso estranho porque moram do outro lado da cidade, onde os cidadãos são tratados como seres humanos. Aqui é diferente. Mas chacina não tinha há muito tempo. Um cara entrar na viatura e sumir sempre tem. Mas chacina do jeito que está não tinha. E a mídia não reportou a chacina. Como 107 podem ser mortos suspeitos? Depois que a pessoa morre, como é que você recupera a vida dela?
CM - Como está sendo a atuação da polícia esses dias no Capão Redondo?
Ferréz - Estão pegando qualquer um que tenha ficha. Se tiver passagem, apanha. Tenho um amigo que foi solto há dois anos, estava trabalhando, sossegado. A polícia pegou a ficha dele e veio atrás. No sábado, ele foi às Casas Bahia pagar uma conta e, quando voltou, a polícia o seguiu, o pegou, levou e bateu muito nele. Deu choque, bateu com pedaço de pau. Ele estava com outro amigo. Depois foi solto. Agora ele não sai de casa mais, está super nervoso, não conversa com ninguém. Está revoltado de novo, porque estava trabalhando sossegado. Mas é assim que você cria uma fábrica de fazer vilão, pegando pessoas que não tem nada a ver. A guerra é entre o PCC e eles, e não com a população. Não temos que pagar por isso, não lucramos nada com isso.
CM - Diante do quadro histórico do país, você acha que essa crise de violência demorou para explodir aqui em São Paulo?
Ferréz - Essa situação existe há muito tempo e as pessoas não queriam ver. Há quatro anos publiquei um artigo na Folha de S.Paulo que já falava isso. Era pela guerra e pelo terror ou pela arte. Ninguém tem arte, cultura, informação. A prisão não reeduca, só repreende. O caminho é esse, o Estado vai se fortificando e já era. Mas hoje o Estado está submisso. Tinha que fazer política pública de segurança de verdade, e não brincar com a população. O Furukawa [secretário de Administração Penitenciária] e o Saulo [Abreu de Castro, secretário de Segurança Pública] estão brincando há muito tempo, até com a vida dos policiais, que estão abandonados. O cara está na rua, no combate corpo-a-corpo e não tem preparo, não tem curso, não aprende. Aí fica um brutamonte contra o outro na rua, e nós no meio, desarmados, querendo trabalhar.
CM - As pessoas estão conseguindo trabalhar esses dias?
Ferréz - As pessoas estão arriscando a vida para trabalhar. Tenho dois cunhados que voltam de noite pra casa, se arriscando. Mas as pessoas têm que ganhar o pão delas. O comércio aqui está fraco, está um clima estranho, as pessoas não saem de casa.
CM - Os senadores e deputados em Brasília devem aprovar nos próximos dias um pacote de leis para aumentar o combate à criminalidade. Há propostas com forte linha repressora. Você acha que este é o caminho?
Ferréz - Acho que o Estado está fazendo corda pra se enforcar. A elite já é suicida há muito tempo e agora o Estado está sendo. Quando você reprime uma criança no primeiro dia, ela sorri pra você. No segundo, já faz uma cara de desconfiada. No terceiro, ela te olha de cara feia. Tenho um amigo que diz que diz que quando você prende um cachorro e todo dia o chuta um pouco, quando você o solta ele te morde, e não te faz carinho. O sistema carcerário é a mesma coisa. Ele tem que ser uma tentativa de restabelecer o convívio do preso, e não só a sua punição. Quando ele for pra rua, vai reagir. Acho que essas leis são um tiro na testa. A questão do Brasil é de educação, desde o primeiro ano. Só que ninguém faz nada. Todo mundo que é um pouco mais esclarecido sabe que o negócio é mais embaixo. Mas infelizmente a coisa vai sendo levada na brincadeira. Essas leis de agora são medidas políticas, que fazem um governo aqui brilhar mais do que o de lá.
CM - Você falou que a elite é suicida há muito tempo. Por quê?
Ferréz - Em um estado onde uma pessoa tem milhões e a outra não tem o que comer no dia, esses mundos acabam se encontrando um dia. E é claro que vão se encontrar, porque é a gente que limpa a casa deles, que cuida da segurança deles, que dirige o carro deles. Não tem como um cara carregar uma carroça o dia inteiro e ver um Audi ali do lado, com um cara no ar condicionado confortável, e dar tchauzinho. As pessoas vão tomando ódio, porque querem que o seu filho também tenha respeito e educação, querem que o posto de saúde funcione, que os policiais não entrem na sua casa. Não é brincadeira. O dia em que a população estiver conscientizada, não vai ter como conter isso. Vai chegar uma hora que o povo vai gritar. Falamos que o brasileiro é pacato, mas quando a bomba explode, olha o que acontece? As pessoas trabalham doze horas por dia e não têm pão pra colocar na mesa. Isso é culpa de quem, do pobre?
CM - O governador Cláudio Lembo deu uma entrevista para a Folha de S.Paulo em que responsabilizou a elite sobre o que está acontecendo. O que você acha disso?
Ferréz - Todo cara da elite retrata a elite como se fosse o outro. A elite sempre é o cara que tem mais do que eu. Eu tenho pouca terra, tenho pouca Mitsubishi, pouco Chrysler. Mas elite é o outro, que tem iate. A elite não se enxerga como elite. Ninguém é culpado...
CM - Você é de uma região que já foi considerada uma das mais violentas do mundo. Ainda há um estigma da classe média e da classe alta em relação à população da periferia?
Ferréz - Pra mim, muita gente da classe média e da classe alta também é ladrão. Vivem explorando os outros. Eu acho que tínhamos que abrir a conta dessas pessoas, fazer uma reviravolta no passado delas. Os bancos estão ganhando 60% de lucro por ano num país que é miserável. Algo está errado. Não é à toa que queimaram as agências bancárias. Depois falam que o crime não está politizado. Tem coisa mais politizada que queimar agência bancária?
CM - Há regiões da cidade em que a população diz que tem mais medo da polícia do que dos criminosos, porque não sabe que tipo de comportamento esperar dos policiais. Você concorda com isso?
Ferréz - Sim. A farda causa uma coisa estranha. Você conversa com um policial num dia e, no outro, se ele passa na viatura, nem fala com você. Tem uns policiais do bairro que vão na minha loja, pedem desconto, e no dia em que estão fardados nem me olham na cara. Não não existe polícia que sorri pra uma criança, que fale bom dia. A polícia comunitária é uma piada. Nunca vi isso, é um fracasso. É a mesma arrogância e prepotência; não mudou nada. Já os bandidos mataram apenas um civil, a namorada do policial, porque ele bateu o carro e ela estava dentro. Pelo lado dos policiais, quantas pessoas morreram? Acho que a máscara vai cair uma hora. Quando divulgarem os nomes, vão ver que muitas das pessoas não têm passagem, não têm nada a ver com a coisa. Isso se contarmos somente as mortes que foram assumidas, porque o IML falou que está cheio de cadáveres que não há como identificar. E os massacres que não entraram no índice? Além da morte desses quatro meninos, um outro morreu no Parque Santo Antônio e mais dois foram atingidos num campo de futebol. A viatura chegou, os caras saíram de touca ninja, mandaram os caras que estavam conversando no campo à noite se ajoelharem e atiraram nos moleques. Um morreu e o outro está no hospital. De dia são as abordagens pra bater. De noite, o bicho está pegando.
CM - Esta noite não houve mortes, pelo menos divulgadas. Você acha que a situação se acalmou?
Ferréz - Não sei. Estou como a população de São Paulo. Sem saber o que vai acontecer.
Governo de São Paulo retira laudos de mortos do IML
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121779.shtml
MARIO CESAR CARVALHO da Folha de S.Paulo O secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, mandou recolher nas unidades dos IMLs (Institutos Médico Legal) todos os laudos de mortes ocorridas em confrontos com a polícia na última semana. A ordem é que essa documentação, que é pública, fique concentrada em seu gabinete.
Desde o início dos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital), na sexta-feira passada, pelo menos 107 suspeitos foram mortos por policiais --uma média de 15,28 mortos ao dia. No primeiro trimestre deste ano, a média de mortes em confrontos era de 1,3. O governo se recusa a divulgar a lista com o nome dos 107 mortos.
Pelo procedimento normal, o laudo seria enviado para as delegacias onde foi registrado o óbito. Poderia também ser remetido para a Justiça Militar, para a eventual instauração de inquérito.
A razão dessa trajetória é simples. O laudo é remetido para a delegacia porque servirá de base à investigação. No documento, um médico legista registra as condições em que o cadáver chegou ao IML, como número de tiros, distância da qual foram disparados e o local do corpo atingido.
O laudo cadavérico do IML não é documento sigiloso, segundo dois especialistas em direito penal --o ex-ministro Miguel Reale Jr. e o ex-juiz Luiz Flávio Gomes. É uma peça pública, como o boletim de ocorrência e inquérito policial no qual é anexado. Quando o delegado acredita que sua divulgação pode prejudicar a investigação, solicita a um juiz que decrete segredo de Justiça sobre o caso.
Três funcionários de IMLs diferentes contaram à reportagem da Folha, sob a condição de que seus nomes não fossem revelados, que a ordem do secretário é que nenhuma documentação das mortes em confronto com policiais permaneçam nas repartições. São Paulo tem quatro IMLs, mas só dois estão em funcionamento, nas regiões central e oeste da cidade. E outros 10 na Grande São Paulo.
A Folha requisitou às unidades do IML acesso aos laudos. Para não violar a privacidade da vítima, informou que não divulgaria nomes -só a condição do morto. As unidades do IML informaram que já não detinham essa documentação, que ela fora enviada para o gabinete do secretário --que nega ter pedido os laudos.
Por determinação da SSP, a direção do IML foi proibida de dar entrevistas. Os IMLs não são os únicos órgãos públicos a negar informações na última semana. Hospitais e prontos-socorros que receberam vítimas fatais também se recusaram a fornecer à Folha dados sobre os mortos. Informaram que esses dados só poderiam ser obtidos nas secretarias municipal e estadual de Saúde. O Estado de São Paulo e a prefeitura estão sob governos do PFL.
Em episódios anteriores, como chacinas, hospitais forneciam diretamente os dados sobre os mortos para a imprensa.
O ex-juiz e advogado Luiz Flávio Gomes diz que não há ilegalidade no fato de o secretário da Segurança requisitar os laudos do IML. O secretário é chefe de toda a polícia e pode pedir os documentos que julgar necessários, afirma.
"É inusitado que o secretário requisite para ele essa documentação. Parece que ele quer tomar conhecimento de tudo antes. Dá um cheiro de ilegalidade", diz.
Esse tipo de requisição era prática corriqueira no regime militar, segundo Gomes. "Os secretários requisitavam e os laudos saíam conforme o desejo do chefe", diz. Na ditadura, o IML serviu para dar aparência de legalidade a várias execuções de opositores do regime. Mesmo então não era comum laudos ficarem sob segredo. No caso da morte do jornalista Vladimir Herzog (1930-1975), por exemplo, o laudo foi divulgado no dia do enterro pelo 2º Exército.
O advogado Miguel Reale Jr., ex-ministro da Justiça, diz que solicitava cópias de laudos do IML quando foi secretário da Segurança no governo de Franco Montoro (1983-1988). "Fazia isso para controlar a violência policial. Deu certo", diz.
A indústria do medo (Folha, 21.05.06)
Empresas de segurança faturam com a crescente sensação de pavor da população, que não se justifica pelas estatísticas
FÁBIO VICTOR DE LONDRES
Enquanto políticos se acusam pelo ônus da violência em São Paulo, a geógrafa Vania Ceccato enxerga outros responsáveis pela crise. A tolerância cultural do Brasil à violência e o isolamento dos ricos em "bolhas de segurança" estão no cerne do caos, avalia ela, especialista em geografia do crime que divide sua pesquisa entre o Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge (Inglaterra), onde concluiu pós-doutorado, e o Departamento de Estudos Urbanos do Instituto Real de Tecnologia de Estocolmo (Suécia), onde fez o doutorado.
Vivendo há 12 anos fora do Brasil (Suécia, Áustria e Inglaterra), a paulista de Rio Claro diz abaixo que o grande equívoco dos governantes do país é desvincular a segurança pública das demais políticas sociais.
FOLHA - Parece haver no Brasil, especialmente nas classes mais abastadas, uma incredulidade com os fatos dos últimos dias. Por quê? VANIA CECCATO - Há vários fatores: primeiro, o Brasil é uma sociedade de classes e, como tal, certos grupos só irão reagir quando se sentirem diretamente ameaçados. As classes mais abastadas no Brasil vivem em "bolhas de segurança", o que é um sinal de status. Carros saem de manhã dos condomínios fechados (bolha 1) em direção a escolas privadas, com guardas nos portões (bolha 2) e, mais tarde, seguem a áreas de diversão ou áreas privadas de lazer (bolha 3). O conceito básico de cidade, "urbis", "lugar de convívio coletivo", tem desaparecido. Segundo, o Brasil é um país com alta tolerância à violência.
No Brasil, muitos não consideram o contexto em que a violência é gerada, como se ela surgisse do nada
Estamos acostumados, desde pequenos, a vivenciar a violência, nos âmbitos familiar e escolar. No países escandinavos, por exemplo, qualquer forma de violência é inaceitável. No Brasil, atividades de lazer são recheadas de violência, personagens de novelas se atacam fisicamente em horário nobre, e isso é considerado "entretenimento". Nesse contexto, o papel da polícia, quando repressivo e violento, é considerado aceitável, senão encorajado, por boa parte da sociedade. Num processo de ação e reação, violência gera violência, que nos últimos dias tem sido orquestrada pelo crime organizado, mas que tem se espalhado de forma desordenada, afetando principalmente quem vive fora das "bolhas de segurança".
FOLHA - A geografia de São Paulo é bem distinta daquela do Rio, onde a polícia em tese consegue ter uma noção dos limites dos encraves dos criminosos (os morros). Em São Paulo, esses limites parecem invisíveis e, após essa onda de violência, é como se a polícia se perguntasse: "Por onde começaremos"? CECCATO - Exatamente. Enquanto no Rio os pontos de drogas são dominados pelos barões dos morros, em São Paulo você tem grupos "pequenos" espalhados pela cidade.
FOLHA - Como brasileira há muito tempo fora do país, qual é a sua percepção sobre a real dimensão da criminalidade no país? CECCATO - Não diria que a falta de segurança (ou sua percepção) no Brasil é um mito mas também não afirmo que é totalmente baseada na realidade. A taxa de homicídios tanto na capital quanto no Estado de São Paulo tem caído desde 1995. Lesão corporal tem aumentado, o que indica que a violência tem se tornado menos letal. Esses indicadores deveriam afetar o quanto a população se sente segura, mas o sentimento de segurança é determinado por outros fatores, que vão além da criminalidade propriamente dita. Nas últimas décadas, a segurança se tornou uma mercadoria. Essa indústria cresceu muito e tem atingido diferentes estratos da sociedade que podem pagar por isso. As cidades se transformaram. Cada vez que volto à minha cidade natal, vejo que os muros que rodeiam as casas estão mais altos e, as fachadas das casas, hermeticamente fechadas. Fios elétricos, cães de guarda, guardas-noturnos, cadeados, grades, alarmes, porteiros... Tudo faz parte dessa indústria que ajuda a manter o nível de insegurança latente.
FOLHA - O que há de mais errado na prevenção à violência no Brasil em relação a países desenvolvidos? CECCATO - É considerar a violência (ou a falta de segurança) algo separado das outras políticas sociais. A prevenção deveria ser feita, como em muitos países europeus, por meio de mecanismos existentes na sociedade, como políticas de trabalho a todos, saúde, escolas, moradia. No Brasil, muitos não consideram o contexto em que a violência é gerada, como se surgisse do nada, e é assim que ela é considerada pelas políticas de segurança brasileiras.
Uma urbe tropical (Folha, 21.05.06)
Para o historiador Nicolau Sevcenko, São Paulo vive desde a semana passada uma nova etapa de sua evolução histórica e social
MARCOS FLAMÍNIO PERES EDITOR DO MAIS!
O castelo de cartas ruiu." Isolada em um centro resguardado pela autoridade pública e encravado na maior cidade do país, a "elite branca" de São Paulo a que se referiu o governador do Estado, Cláudio Lembo (em entrevista à Folha de 18/5), viu ruir na semana passada os limites físicos e mentais que a separavam dos bolsões de miséria da periferia. É o que pensa o historiador Nicolau Sevcenko em declaração à Folha. Para ele, que leciona na USP, a cidade finalmente se aproximou de forma evidente do padrão de outras metrópoles brasileiras, como Salvador, Recife e Rio, onde miséria e pobreza se justapõem e transigem.
Os ataques põem abaixo a ilusão que São Paulo sempre produziu: de que era diferente das outras
Autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Cia. das Letras), importante estudo sobre o impacto das novas tecnologias nos processos de urbanização da São Paulo dos anos 20, Sevcenko também avalia a ética individual na formação das sociedades brasileira e americana. Na entrevista abaixo, concedida por telefone dos EUA, onde é professor convidado de culturas latino-americana e hispânica em Harvard, Sevcenko reivindica para o Brasil uma "operação mãos limpas" e uma revolução educacional, nos moldes da feita pela Índia e pela Coréia do Sul.
FOLHA - Os ataques da semana passada são um ponto de inflexão no desenvolvimento social e histórico de São Paulo? NICOLAU SEVCENKO - Sim. A característica de cidades como Rio, Salvador ou Recife é de convívio muito próximo entre os bolsões de privilégio e os de miséria, de tal modo que se configura uma situação de porosidade entre as diferentes áreas e condições sociais. Do ponto de vista histórico, o que diferenciava São Paulo era seu modo de expansão urbana, que empurrou a população para as periferias, criando uma espécie de área de privilégio central mantida sob o controle da autoridade pública e para a qual a periferia é invisível. Os ataques do PCC configuram uma situação inédita e põem abaixo a ilusão que São Paulo sempre produziu: a de que era diferente das outras. Na verdade, ela é exatamente a mesma coisa, diferindo-se apenas pela disposição territorial e o controle do espaço público. Esse castelo de cartas iria ruir mais cedo ou mais tarde, sobretudo porque a expansão desse centro privilegiado foi tocando cada vez mais nos bolsões de pobreza. O que antes era um contato raro foi se tornando cada vez mais inevitável. Essa espécie de mistificação paulista foi sendo corroída nas últimas décadas e não se sustenta mais. São Paulo é exatamente como todo o restante do país, feita de uma brutal desigualdade, que concentra e não distribui riqueza.
FOLHA - Mas essa segregação não é um fenômeno comum às demais metrópoles, como as dos EUA? SEVCENKO - O caso brasileiro é de fato muito parecido com o americano. Também há descompensação, e não por acaso os EUA são o país com a maior população carcerária do planeta. Os pobres ficam concentrados no centro da cidade, as "no go areas" ["áreas aonde não se vai"], enquanto a classe média se espalha pelos subúrbios. Mas a diferença em relação ao Brasil é que nos EUA a autoridade pública ainda tem o controle espacial. O Brasil, ao contrário, vive uma situação de corrupção que se tornou orgânica, estrutural. Nesse sentido, o que ocorre no nível "baixo" da criminalidade é uma reprodução do que acontece no nível "superior" da corrupção política e financeira do país.
FOLHA - As soluções para o problema da violências nas metrópoles do Brasil e dos EUA são similares? SEVCENKO - Não, justamente porque, nos EUA, a corrupção não está no controle. Mas, acima de tudo, o que prevalece é a obsessão nacional pelo rigor da lei, que começa no quarteirão onde se mora, no bairro, no subdistrito, até chegar ao governo federal. Já no Brasil ocorre um desinvestimento do poder em relação à população, que deveria assumir o gerenciamento da cidadania. Nesse vácuo, cria-se um ambiente propício a todas as formas de incivilidade, das pequenas fraudes cotidianas até a alta criminalidade.
FOLHA - Mas aqui não caímos na velha tese da volatilidade entre os espaços público e privado no Brasil? Seguindo esse raciocínio, não estaríamos sobrecarregando demais o cidadão em detrimento das instâncias públicas, que, afinal, estão lá representadas democraticamente? SEVCENKO - Acho que não, acho que se trata de uma situação sinérgica, em que um dos elementos da equação rebate sobre o outro e assim sucessivamente. Toda essa tolerância pelo desrespeito às normas está incorporado ao modo de viver. É aquilo que os romanos chamavam de uma "república celerada", que se dá devido ao ambiente de impunidade.
FOLHA - Mas, insisto, não existiria aí uma exacerbação de uma ética individual em detrimento da responsabilidade do poder público? SEVCENKO - Assim seria se você olhasse o sistema segundo os padrões de regra com que se articula. Mas o problema é que as regras estão sendo burladas o tempo inteiro, e as instâncias políticas são as primeiras a se beneficiar dos privilégios.
FOLHA - Levando ao limite sua linha de análise, poderíamos concluir que, bem, a democracia não funciona no Brasil? SEVCENKO - Não é que ela não funciona: ela tem certos elementos viciosos no Brasil que precisam ser aperfeiçoados, particularmente no modo como se articula em partidos que não apresentam coesão orgânica com as comunidades. Aliás, talvez seja essa a diferença essencial entre Brasil e EUA: a política que nasce no bairro. Na escola do bairro, na biblioteca, no corpo de bombeiros, desdobrando-se de baixo para cima. No Brasil, o que há são grupos organizados que não têm nenhum compromisso com a base social do país, que não têm nenhuma outra intenção que não sua própria perpetuação, em uma situação de privilégio. Todo o conjunto do sistema passa a ser contaminado pela idéia de privilégio, em um país que é imensamente desigual.
FOLHA - Como reverter a falta de participação ativa do cidadão em um país hostil a tal tradição? E, caso isso não seja possível, a democracia no Brasil está fadada a ser uma definição meramente formal? SEVCENKO - Sim, lamento dizer, mas, no momento, é o que ela é: uma fraude com uma fachada institucional. Mas penso em soluções em dois níveis. A primeira seria uma "operação mãos limpas", como a adotada na Itália, algo que poderia atingir todos os níveis do poder político e econômico e, assim, mudar a história do Brasil. Outra providência seria deter a degradação do ensino público. Essa é uma área crítica e estratégica, essencial para reverter a dissolução entrópica da norma pública e social. Uma revolução educacional foi feita em sociedades muito mais populosas e complexas que o Brasil -como a chinesa, a indiana e a sul-coreana- e que saíram de patamares de subdesenvolvimento muito mais drásticos.
FOLHA - Para o sr., então, a questão da violência é sobretudo social, e não jurídico-criminal? SEVCENKO - Há duas formas de analisar a questão. Certamente que há medidas pontuais a serem tomadas em várias áreas. Mas, se você se restringir a isso, estará apenas tentando conter um dique à beira de estourar. Para entender o fundamento da questão, é preciso entender o desnível do dique, a maneira como a água extrapola o limite que a estrutura pode suportar.
Ou você olha o problema dessa forma ou vai tentar consertar com bandeide e esparadrapo. Acho que politicamente é mais fácil conduzir na base do bandeide e esparadrapo, pois são imediatamente visíveis.
Brasil fracassou na reforma da segurança pública, diz Anistia
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/05/060518_anistiarelatoriocg.shtml
Presos rebelados em São Paulo Relatório foi concluído antes da onda de violência em São Paulo Autoridades federais e estaduais fracassaram na tentativa de reformar o sistema de segurança pública do país, diz o relatório anual da Anistia Internacional, divulgado em Londres nesta terça-feira.
"Houve poucas iniciativas políticas na área dos direitos humanos, com várias propostas do governo federal ainda aguardando implementação e poucas, senão nenhuma, autoridades locais introduzindo as prometidas reformas na segurança pública", afirma o documento.
O pesquisador Tim Cahill, que participou da elaboração do capítulo sobre o Brasil, diz que tanto o governo federal como os estaduais são responsáveis pela falta de avanços.
Para Cahill, o governo federal teme se aproximar demais do discurso de defesa dos direitos humanos num período eleitoral e os estaduais dão respostas inadequadas às crises quando elas surgem.
O documento traz diversas críticas ao sistema carcerário do país e a abusos cometidos por policiais, como tortura, maus-tratos e homicídios.
"A impunidade continuou, e a ausência de informações publicadas sobre os casos julgados segundo a Lei de Tortura, de 1997, fez com que a verdadeira dimensão do problema continuasse a ser desconhecida", diz o relatório, que reconhece alguns avanços como "a campanha contra a tortura prometida pelo governo federal, lançada em dezembro."
O documento cobre o período de janeiro a dezembro de 2005 e, portanto, exclui a recente onda de violência atribuída ao PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo.
O relatório denuncia a superlotação carcerária, destacando a situação no centro de detenção preventiva da Polinter, no Rio de Janeiro que, em agosto, abrigava "1,5 mil detentos num espaço concebido para 250, com uma média de 90 homens numa cela de 3 x 4 metros".
Apesar das críticas, o pesquisador da Anistia não acha que o Brasil seja uma exceção à tendência apontada no relatório de relativa melhora na questão dos direitos humanos.
"Tirando o que aconteceu em São Paulo agora e no Rio de Janeiro no ano passado, existe um espaço maior para os direitos humanos", disse Cahill.
Ainda assim, ele menciona o contraste entre a evolução dos casos do ex-ditador Augusto Pinochet, no Chile, e Alberto Fujimori, no Peru, com a absolvição do coronel Ubiratã Guimarães no processo sobre o massacre do Carandiru – a decisão saiu depois da conclusão do relatório. Para Cahill, a decisão é "chocante".
Em um caso, ao falar da tortura de menores na Febem, a Anistia faz críticas diretas ao ex-governador Geraldo Alckmin.
"Numa aparente tentativa de sabotar o trabalho dos grupos de defesa dos direitos humanos, o (então) governador Geraldo Alckmin acusou dois proeminentes ativistas dos direitos humanos – Conceição Paganele e Ariel Castro Alvez – de incitarem os motins."
Segundo Cahill, os acontecimentos em São Paulo apenas mostram que o Brasil precisa de reformas não só no sistema carcerário, como em todo o sistema de Justiça Criminal, e reformas sociais.
"De mil a 1,5 mil pessoas são presas por mês. Ninguém pode construir presídios com essa capacidade", disse Cahill.
Otimismo
Na introdução do relatório, a secretária-geral da Anistia Internacional, Irene Khan, diz que, de uma forma geral, os acontecimentos de 2005 dão esperança de uma melhora no respeito aos direitos humanos "depois de cinco anos de reação contra direitos humanos em nome do combate ao terrorismo".
A secretária da Anistia cita ainda a queda no número de conflitos no mundo, graças a iniciativas na prevenção e administração de conflitos, e reformas na ONU como razões para otimismo.
Apesar de sistemas judiciais "corruptos, tendenciosos e ineficientes", diz o texto, "a maré está começando a virar contra a impunidade em algumas partes do mundo".
Outras iniciativas elogiadas são a adesão do México ao Tribunal Penal Internacional, tornando-se o 100º Estado a ratificar o Estatuto de Roma no TPI, apesar da oposição dos EUA, e a decisão de levar o caso do conflito de Darfur, no Sudão, ao Conselho de Segurança da ONU.
Segundo a Anistia, a opinião pública encampou o discurso dos direitos humanos e passou a pressionar os governos, levando alguns deles a recuar em leis que desrespeitavam liberdades individuais.
"O que é diferente sobre 2005 em relação a anos anteriores é que a disposição pública está mudando, graças ao trabalho dos que advogam pelos direitos humanos e de outros, o que está colocando os governos dos Estados Unidos e europeus na defensiva. As pessoas não estão mais dispostas a comprar o argumento falacioso de que reduzir a nossa liberdade vai aumentar a nossa segurança."
A Anistia também cita o aumento da pressão para que os americanos fechem a prisão de Guantánamo, "o símbolo mais ostensivo do abuso do poder dos EUA".
Ainda assim, a entidade lembra que os abusos continuam por parte dos Estados Unidos e de outros países.
Países "como Egito, Jordânia e Iêmen", diz o relatório, continuam a prender, sem acusação ou julgamento justo, "com o apoio tácito dos EUA".
Irene Khan também cobrou mais liderança da União Européia.
"Eu fico decepcionada que a União Europeia permaneça uma voz basicamente muda em direitos humanos", disse Khan. A UE, argumenta ela, tem que estar mais disposta a confrontar "os fracassos estarrecedores da Rússia em direitos humanos na Chechênia" e a resistir a pressões comerciais e manter o embargo de armas à China.
Crime não é privilégio dos pobres, diz ex-secretário
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11236
Alheio à repetição incessante de discursos fáceis, especialista em segurança pública aborda questões de fundo como a desarticulação do Estado, o câncer da corrupção e o risco de agravamento ainda maior da violência.
Maurício Hashizume – Carta Maior
BRASÍLIA - Ainda quando secretário de Segurança Pública no Distrito Federal, o advogado Roberto Aguiar, especialista convocado pelo então governador Cristovam Buarque, foi surpreendido por uma pergunta peculiar de jornalistas meio atordoados com a inauguração da linha de metrô que liga populosas cidades satélites de Brasília ao Plano Piloto, “habitat” da elite local:
- O senhor não tem medo de que o metrô traga criminosos de Ceilândia e Taguatinga para o Plano Piloto?
- Eu tenho medo do pessoal do Plano Piloto que pegará o metrô para ir até lá – retrucou, de forma desconcertante, o então secretário.
A parcela rica da população, explica Aguiar em entrevista exclusiva à CARTA MAIOR, tem mais condições de desenvolver formas sofisticadas de crimes, formando assim um know-how no campo dos delitos que se espalha rapidamente entre a população de baixa renda. “Nós nos cegamos. Com a boa intenção de dar atenção à questão dos pobres, a gente imputou só a eles a questão da criminalidade. E esquecemos de sofisticar mecanismos de controle da criminalidade de classe alta”, coloca Aguiar, que também foi secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro durante o governo da petista Benedita da Silva, em 2002, e conseguiu proezas na época como a prisão do famoso “Celsinho da Vila Vintém (leia entrevista publicada na ocasião Política de Segurança Pública no Brasil está voltada para o passado).
“Demos o privilégio do crime aos pobres e o privilégio da repressão aos ricos”, resume, diante da perplexidade generalizada provocada pelos recentes ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) a forças policiais e à respectiva reação dos agentes fardados que espalhou mais de uma centena de vítimas executadas como “suspeitas” na periferia de São Paulo.
Alheio à exibição exaustiva de presídios dos EUA na televisão, à repetição incessante do problema dos bloqueadores de celulares e ao desgastado discurso do aumento da repressão e das penas, o professor titular de Filosofia do Direito da Universidade de Brasília (UnB) toca em questões de fundo como a desarticulação e a covardia do Estado, a necessidade de combater a corrupção dentro das instituições oficiais, a complexidade da questão da segurança pública, os equívocos da cúpula da polícia paulista e as formas possíveis de mobilização de forças sociais para que a situação do País não se torne ainda mais dramática. Leia a seguir trechos selecionados da entrevista:
CARTA MAIOR – Quais são as raízes da falência do sistema de segurança pública do Brasil? ROBERTO AGUIAR – O País apresenta algumas características históricas, que não deveriam ser novidade para ninguém. A principal delas é que nós temos um Estado apartado da cidadania. Vivemos uma grande crise de representatividade. As ações do Estado não são ações que traduzem uma vontade, um consenso ou no mínimo um acordo da consciência nacional.
Segundo, o Estado está acostumado a fazer uma política absolutamente baixa. Tudo é disputado e não se consegue enxergar as coisas sob o ângulo da cidadania. Prevalece o ângulo dos interesses dos partidos, da ocupação de cargos, da disputa dos espaços políticos e econômicos. É interessante perceber, por exemplo, como a imprensa foi guiada pelo discurso do [governador de São Paulo, Cláudio] Lembo, que atacou o próprio PFL e o PSDB, e surpreendeu o PT com seu ‘discurso de esquerda’. Com isso, expressa-se mais uma vez um tipo de disputa política específica enquanto a população está morrendo.
O terceiro ponto é que a característica do mundo contemporâneo é a velocidade, que varre o mundo desde as comunicações online até as formas diretas de intervenção. Os países mais ‘rápidos’ são os mais evoluídos. Os Estados Unidos têm armas mais rápidas, acesso a informações com mais rapidez, etc. O que acontece é que as pessoas que estão à frente do Estado são néscias no que diz respeito a essa demanda: nova criminologia, novas formas de delinqüência e até mesmo as novas formas de definição do que é delinqüência. E com isso, os delitos eletrônicos não têm tipo penal – não se sabe o que fazer com quem comete esse crime. Com o avanço da ciência, o “colarinho branco” já se mistura com nanotecnologia, clonagem, transgênicos. Tudo isso não existe para eles.
CM – E nos momentos de perplexidade depois de “tapas na cara” como o da semana passada, aumentam as pressões por soluções milagrosas, enquanto os problemas de fundo continuam intactos... RA – Isso. Temos também um grande problema de corporativismo. A democracia sofre violentamente porque quase todas as lutas são corporativas. Então quando se fala de crimes, os juízes ficam se defendendo como corporação, os advogados ficam se defendendo como corporação, os funcionários públicos e outros sindicatos também. Temos o Brasil das corporações, não é o Brasil da cidadania. Isso dificulta ainda mais porque quando acontece algo como vimos há alguns dias, todo mundo tira o time de campo para colocar a culpa em algum terceiro. O governo federal fala que não tem nada a ver com o assunto porque é responsabilidade estadual. E os estados reclamam que o governo federal não ajuda. E nesse jogo de empurra corporativo, o Brasil permanece no século XIX, apesar de todos os avanços tecnológicos.
Outra coisa muito importante é que há, no fundo, uma cultura - predominante desde o Brasil Colônia - de que o corrupto se dá bem. É só relembrarmos de Xica da Silva, do contratador que desviava dinheiro. Esse caldo é perigosíssimo.
Acresça-se ainda o fato de que o brasileiro está perdendo a esperança. Estão tirando o último direito do cidadão, que é sonhar. Os partidos políticos no Brasil são espaços para jogos de interesse. Achávamos que houvesse um partido [PT] que pudesse fazer algo, mas quando ele assumiu o governo federal, negou aquilo que havia pregado. A grande realização [do PT] é a consolidação da política econômica que ele combateu por mais de 20 anos. Não existem dutos políticos que efetivamente representem aquilo que se quer.
O reflexo disso tudo na segurança pública é estrondoso. As autoridades pensam que segurança se resume a mais homens, mais viaturas e mais equipamentos. Esquecem que é algo complexo, multidisciplinar e interinstitucional. A segurança está presente em tudo e tem um papel ingrato: quando todos os setores falham, cai tudo nos colos dela. É “premiada” com o restolho de todas as omissões de outros setores.
CM – Como esse atraso generalizado se traduz efetivamente? RA – O Estado não tem força para combater a influência das Forças Armadas sobre o setor. O trabalho de segurança pública não tem nada a ver com o trabalho militar. Mas o controle das armas e a formação são de militares. As pessoas não têm preparo adequado. Segurança pública é um serviço para a cidadania. Por causa da formação militar, com base na defesa nacional e do combate ao inimigo, os agentes começam a encarar o cidadão como inimigo. Daí a nossa dificuldade de aumentar o contingente da polícia comunitária. O policial precisa ser uma pessoa respeitada que vive na comunidade, inclusive sendo uma espécie de Poder Judiciário da localidade com técnicas diferentes, muito mais que um repressor.
E o corporativismo que já foi citado faz com que os diferentes setores da polícia não estabeleçam comunicação. No Distrito Federal, nós demos cursos de reeducação social aos nossos policiais e percebemos claramente que a Polícia Militar não conhece a Polícia Civil. Os Bombeiros Militares também não conhecem as duas polícias. Resultado disso: na hora da ocorrência, o que se vê é uma confusão generalizada. Então o primeiro passo em questão de segurança é o sistema único.
CM – O governo federal tentou implementar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)... RA - Mas esse sistema único precisa ser muito mais amplo: uma só lei, uma só formação. Por isso a nossa proposta era ter uma Escola Superior de Segurança Pública central, com representações nos estados. E vencimentos e soldos parecidos. Essa questão é muito peculiar. O problema não é só o policial ganhar pouco. O problema é a diferença entre o topo e a base. “Praças” ou soldados ganham salário mínimo por liminar judicial precária justamente nos estados onde os coronéis ganham mais no Brasil. Imagine como é a disciplina numa polícia como essa.
Daí a facilidade dessas pessoas entrarem na corrupção, de não colaborarem com a cidadania. Afinal de contas, eles também não são cidadãos. E nós somos os inimigos. No fundo, esse pessoal tem muita dificuldade em tratar de direitos humanos porque eles têm os direitos humanos deles mesmos estraçalhados dentro das corporações. Nós mudamos o regulamento disciplinar da PM do Rio porque a base fundamental dele era de D. João VI, atualizado em 1967 ou 1968. Se você chegasse com o coturno sujo, ia para prisão. Se matasse um monte de gente, não acontecia nada. Sem possibilidade de defesa nem diálogo com as patentes maiores. Quando veio o governo da Rosinha Garotinho, a primeira coisa que eles fizeram foi retomar o regulamento antigo. Velhas estruturas são mantidas porque facilitam a corrupção e dificultam o controle.
CM – E a questão da base legal? RA – O nosso Código Penal é antigo. As novas demandas sobre criminalização e descriminalização não são atendidas. As forças policiais, como não sabem das coisas novas que estão acontecendo, são treinadas apenas para uma determinada rotina. Os delitos mais cotidianos até são combatidos, mas se ressentem de habilidade para outros delitos mais sofisticados: corrupção, lavagem de dinheiro, crime internacional, etc. Os criminosos são muito mais contemporâneos, se atualizam. E aí há um destempo. Os crimes mais organizados funcionam em rede e o Estado é hierárquico e piramidal. Isso dá uma diferença de velocidade. A resposta do Estado é lenta.
A Lei de Execuções Penais também é muito complicada. Uma política penitenciária séria precisa levar em consideração as várias gradações dos crimes. Um criminoso simples do art. 155 (furto) do Código Penal fica com um camarada que faz parte de uma quadrilha e faz uma pós-graduação do crime na mesma cela.
Prisão é algo novo no Código Penal. É do século XIX. Os juízes parecem que nascem com o material genético da prisão ou da multa e não conseguem pensar em outras coisas. Para mim, os pequenos criminosos nunca deveriam estar em prisões. Deveriam cumprir penas alternativas ou outras formas punitivas. Mais do que prender Jorgina [de Freitas, advogada que roubou cerca de US$ 500 milhões do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) no início dos anos 90] e Lalau [apelido do juiz Nicolau dos Santos Neto, acusado de desviar R$ 169 milhões da obra de construção do Tribunal Regional de Trabalho de São Paulo (TRT-SP)], por exemplo, era preciso recuperar tudo o que eles roubaram.
Punir de outras formas é mais barato e mais educativo. É que vivemos um momento histórico complicado em que as pessoas são obcecadas por números. Uma pesquisa com as mulheres e as crianças dos presos certamente mostraria uma desagregação total da família. Nós punimos quem não fez nada. Deveriam ser presos apenas aqueles que são efetivamente perigosos.
CM – Então quais deveriam ser as diretrizes na área de política prisional? RA - É preciso diminuir as prisões – acabar com o modelo das cidades-presídio – e diminuir o número de prisioneiros, para que haja controle efetivo das pessoas. E isso só se faz “limpando” moralmente e eticamente essas instituições.
Quando eu estava na secretaria [de Segurança Pública] do DF, nós tínhamos 200 empregos [para a recuperação de ex-detentos]. Havia sistema educacional, curso profissionalizante e quando eles saíam tinham emprego. Mas quando eu estava saindo, a progressão de regime não estava sendo reconhecida pelo juiz. Então os empregos começaram sobrar. E qual era a forma de aferição que o juiz tinha [para não abreviar a pena]? O “olhômetro”. Ele não tinha psicólogos, sociólogos, assistentes sociais especializados, habilitados para isso. Os presos podem continuar sem o benefício da progressão do regime apesar de cumprir todos os requisitos. E aí, quando ele sai, acaba voltando. A cada retorno do criminoso para a prisão, o crime é mais grave. Ele faz o curso de “especialização” lá dentro, sai e volta para fazer o “mestrado” até fazer o “doutorado”. Uns até já têm “pós-doutorado”.
CM – E aí essa alta taxa de reincidência faz com que parte abonada da sociedade reforce a idéia de que o problema da violência está no outro, no pobre, no excluído. RA – Havia uma visão de que os pobres delinqüiam porque eram oprimidos. E aí vieram algumas pesquisas que mostraram coisas interessantíssimas. Nas cidades muito pobres, praticamente não há crime. No interior de estados do Nordeste – Ceará, Paraíba, Pernambuco – aparecem apenas alguns crimes passionais. Ninguém furta nada do outro nessas localidades. E notou-se que as delinqüências e tensões eram freqüentes em cidades onde existem grandes distâncias sociais, propagandas que estimulam o desejo (carro, roupa) a partir dessas assimetrias.
Uma outra pesquisa feita em São Paulo pegou todos os prisioneiros de uma dessas grandes unidades prisionais e somou todos os prejuízos materiais provocados pelo pessoal que estava lá dentro, inclusive com cálculos complicados – adicionados ainda aos gastos que o Estado tinha ao mantê-los presos. Não dava nem 10% dos recursos destinados a apenas um banco beneficiado pelo Proer [Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema Financeiro Nacional]. É paradoxal. Nessa questão, nós voltamos nossos olhos o tempo todo para os pobres.
Quando eu era secretário aqui no DF, os jornais da cidade vieram fazer a seguinte pergunta para mim quando a linha do metrô começou a funcionar: “O senhor não tem medo de que o metrô traga criminosos de Ceilândia e Taguatinga para o Plano Piloto?” A minha resposta foi desconcertante: “Eu tenho medo do pessoal do Plano Piloto que pegará o metrô para ir até lá”. Porque os ricos têm acesso a formas sofisticadas de crimes e podem ensinar novos golpes, além de acentuar ainda mais as diferenças sociais. Nós nos cegamos. Com a boa intenção de dar atenção à questão dos pobres, a gente imputou só a eles a questão da criminalidade. E esquecemos de sofisticar mecanismos de controle da criminalidade de classe alta, que hoje é a mais representativa do ponto de vista de dano material e espiritual. Bens jurídicos como a esperança, a ética e a retidão estão sendo lesados. Demos o privilégio do crime aos pobres e o privilégio da repressão aos ricos.
CM – O que mais chamou a atenção do senhor nesse episódio recente de ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC)? RA – Eu nunca vi tantos erros banais [da cúpula responsável pela Segurança Pública em São Paulo]. Quando começou essa coisa do PCC [com a série de rebeliões em mais de 20 presídios no ano de 2001], o primeiro movimento deles foi espalhar os líderes pelo Brasil inteiro – Mato Grosso do Sul, Brasília, etc [ampliando o raio de ação e garantindo poderio e capilaridade da facção criminosa]. E justamente no momento crítico em que eles poderiam fazer exatamente esse movimento de dispersão, eles pegam o primeiro, o segundo e o terceiro escalão do PCC e levam todos juntos para um único presídio, reunindo toda massa crítica da facção. De lá, as ordens foram transmitidas para os “funcionários” do crime de forma muito mais clara e coesa. Parece que faltam estudos de estratégia e de tática. E agora, em nome de uma democracia formal, o pessoal deu de fazer um diálogo, um acordo. Eles precisam aprender: não se entra para fazer acordo numa posição fraca. Ou seja, [os responsáveis pela gestão da segurança pública em São Paulo] não acertaram nem na entrada e nem na saída.
CM – E a polêmica inflada em torno dos bloqueadores de celular? RA – Essa questão eletrônica é muito falada, mas não deve estar no centro da polêmica. Sempre me fazem a seguinte pergunta: “Qual é a solução para depois de amanhã?” Eu tenho vontade de responder da seguinte forma: “A solução é dormir, tomar um bom café, ler um livro...” (risos). Por quê? Porque o grande problema dos presídios não está no telefone celular. Celular não tem pernas. Advogado corrupto não entra sozinho sem nenhum tipo de apoio, assim como esses “pombos-correios” que ficam levando mensagens para lá e para cá. Ora, os funcionários é que são corruptos.
Querem diminuir a replicação de ordem dos “escritórios” que foram montados dentro das prisões? Tirem todos os corruptos, mesmo que haja algumas injustiças. Depois resgate, reponha, indenize, mas tirem todos os corruptos que existem no sistema prisional. O problema é da ética do Estado e não do celular. Vi um informe publicitário de empresas de telecomunicações e fiquei impressionado: elas se comprometeram a cortar o sinal de celulares nos presídios apenas por 20 dias e não [definitivamente dentro do prazo estabelecido] em 20 dias.
O momento é muito sério: estamos diante de uma crise da democracia, de uma crise do espírito republicano brasileiro. Eu fui da geração que enfrentou os militares, no período da ditadura militar. Acho que podemos correr o risco, se continuar esse tipo de mentalidade, de entrarmos numa espécie de resistência contra o grupo de delinqüentes que está fora do Estado, dentro do Estado e na interface do Estado com a sociedade. Está tudo minado. Temos que limpar as instituições dos quadros corruptos. Se bloquearmos a comunicação da tecnologia dos celulares atuais, logo surgirá uma nova tecnologia. É a velocidade [atuando] mais uma vez.
CM – A questão da recuperação do Estado é fundamental, mas é um processo complexo e de longo prazo. Como evitar que, no curto prazo, ações extremadas - como a reação truculenta do aparato policial contra moradores da periferia de São Paulo - não piore ainda mais a situação crítica em que nos encontramos? RA – Eu estou esperando as pesquisas. Acho que a candidatura Alckmin deve tomar uma pancada forte. Também deve haver reflexos nas intenções de voto para o presidente Lula, por causa desse distanciamento falso dele do problema. O meu medo é que todos sejam deslegitimados e apareça um novo [Fernando] Collor. Aparece o cara carismático, demagogo e coloca o País em um caminho ainda pior.
Uma alternativa política imediata é agitar esse problema – por meio de órgãos como a CARTA MAIOR, inclusive – não pelo lado apenas da segurança, mas de representatividade, desse risco que estamos correndo. E abrir espaço para a sociedade falar. Criar formas de comunicação, de discussão desses temas. Precisamos fazer isso já! Se não, todos serão uma presa desse discurso de “vamos reprimir”, “vamos matar”. Começa a subir os índices de criminalidade e aí vem aquela história de “passa fogo nos caras”. O sistema realimenta isso o tempo todo. Viriam novos. Nós somos um celeiro de violentos. É impressionante como a violência é cotidiana, é aceita como normal. No DF, no meu tempo de secretário, a maioria dos estupros ocorria dentro de casa.
Também é impressionante a indiferença das pessoas com relação à pobreza. Outro dia eu ouvi uma pessoa dizendo que o grande problema das crianças de rua de Brasília é estético, pois elas enfeiam a cidade projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. É “a banalização do mal” completa, como dizia [a pensadora política alemã] Hannah Arendt. É esse quadro que tem que ser atacado.
O primeiro passo é limpar a questão da corrupção. Isso é possível e não custa um tostão. Basta vontade. Depois é preciso reeducar as nossas forças do Estado, para diminuir a tensão na sociedade. Recuperar o grau de confiança das autoridades e dos agentes públicos. E o terceiro é fazer toda uma revisão legislativa penal, de execução penal, e de uma série de entulhos que dão lentidão aos processos judiciais, marcados por recursos alucinados. Limpar os Códigos de Processo Penal e de Processo Civil. E modificar a formação dos juízes e dos promotores. O grande procurador já falecido Darcy Arruda Miranda, cassado pela ditadura, dizia que o concurso para promotor deveria exigir obrigatoriamente que os aprovados nas avaliações teóricas passassem um período de dez dias presos na cela para aprenderem onde estarão mandando as pessoas. No Brasil, os papéis é que são julgados, e não as pessoas. Precisamos de outras formas de concurso para juízes e de outras formas de escolas de Direito. A coisa é uma teia. Essa visão simplista e imediatista de segurança pública é completamente primitiva e ineficaz. Mas o meu pavor maior é de que a democracia caia neste País.
A quadrilha neoliberal e a indústria do pânico
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PCC vale-se de métodos de direção e facilidades trazidas pelo neoliberalismo. Direita incentiva pânico generalizado para legitimar propostas repressivas contra organizações populares
Gilberto Maringoni
Ainda é cedo para se avaliar as conseqüências mais profundas dos dias de fúria na área da segurança pública em São Paulo. Tudo indica tratar-se de um acontecimento maior, daqueles em que todas as classes e segmentos sociais ficam obrigados a tomar posição. Quem é capaz de ficar neutro quando a maior cidade da segunda economia da América Latina – seguida de dezenas de outros municípios – tem sua vida econômica, social e cultural paralisada por mais de uma centena de ataques criminosos? E ninguém permanece inerte quando as forças de segurança buscam sair da defensiva e partem para um revide brutal. O saldo oficial de mortes – 37 agentes de segurança e 109 suspeitos – coloca o Brasil no patamar de países em guerra.
Comoções urbanas dessa natureza são raríssimas. Muita tinta já foi gasta para descrever o pânico generalizado entre aqueles que vivem e trabalham no centro expandido da capital paulista, impulsionado por ameaças reais e imaginárias. Boatos de ataques a estações de metrô e agencias bancárias e a notícia de que haveria um toque de recolher a partir das 20 horas forçaram o fechamento antecipado do comércio e de outras atividades produtivas.
Toque de recolher não é novidade para a população dos superpopulosos bairros periféricos das grandes cidades brasileiras, bem como tiroteios e muito sangue a qualquer hora do dia ou da noite. Inédito é o fato de a criminalidade ter colocado de joelhos os aparatos de segurança municipal e estadual, em dezenas de ações surpresa, tão eficientes quanto rápidas.
PCC S. A.
O Primeiro Comando da Capital (PCC), autor dos impressionantes ataques iniciais, não é apenas uma quadrilha a enfrentar a polícia. É uma empresa de médio porte em contínua expansão. Possui um comando centralizado e uma estrutura flexível, funcionando por redes de adesão voluntária, com capacidade de atuação just-in-time e rapidez de decisão.
Poder-se-ia dizer que o crime aderiu à novas técnicas de gerenciamento, característica das empresas atuantes em ambientes desregulados e flexíveis. Uma quadrilha pós-moderna. Coincidentemente, surgiu nas cadeias paulistas em 1993, época da ascensão do neoliberalismo na política brasileira.
A propalada arrecadação mensal do PCC, que resultaria numa receita de R$ 700 mil não é dinheiro de roubo de galinha. É um montante respeitável a circular pela economia formal, em um sistema de lavagem que inclui empreendimentos que giram grandes quantidades de dinheiro vivo em curto prazo, cujos caminhos são difíceis de se detectar. A privatização da CMTC, em São Paulo, por exemplo, resultou num descontrole da contabilidade do setor de transportes. A circulação de dinheiro vivo em empresas desse tipo é enorme. É um convite ao giro de dinheiro não-contabilizado, para utilizar um eufemismo da moda.
Lançados no mercado e negociados como capital de giro e empréstimos de vários tipos, os R$ 700 mil multiplicam seu valor real. Como um montante desses circula sem passar pelo sistema financeiro? Como então acreditar que estamos diante de um cenário no qual há uma divisão clara entre bandidos e homens de bem, entre polícia e ladrão, entre legalidade e ilegalidade e entre “bons” e “maus”? Como crer que o bordão repetido à exaustão há décadas – “bandido é na cadeia” – possa apontar alguma solução, se o “partido”, como chamam seus membros, surgiu exatamente dentro do sistema prisional e, a partir dali, projetou-se para fora? Como crer também que, enjaulado e trancafiado a sete chaves, este comando não tenha ramificações dentro da própria estrutura carcerária?
O PCC desmonta a lógica cartesiana rasteira de combate ao crime. Marcola e os principais líderes da organização já vêem o sol nascer quadrado há mais de seis anos, sem que isso faça frente às suas iniciativas.
DISCURSOS DA DIREITA
Se assim é, fica patente que os velhos discursos conservadores de “bandido é na cadeia”, mais repressão, mais jaulas, mais liberdade de ação para a polícia, pouco ou nada tem de eficiente. Seus proponentes muito possivelmente sabem de sua inutilidade, diante de uma situação nova.
É preciso atentar para as nuances existentes nesse fraseado. Há a tradicional formulação neandertahl e tosca de “pena de morte já!” e suas ramificações na intolerância de setores da classe média contra pobres, negos e nordestinos. E existe a variante sofisticada, brandida pelo ex-prefeito de São Paulo, José Serra, em inexplicável artigo, publicado com direito a chamada de capa, na Folha de S. Paulo de domingo (21). Antes de lermos o que o candidato do PSDB ao governo paulista escreveu, vamos lembrar de suas andanças recentes.
Serra está se tornando um PhD em se fingir de morto. Logo após a indicação do ex-governador Geraldo Alckmin à candidatura presidencial, o ex-alcaide saiu de cena por mais de duas semanas, alegando problemas de saúde. Agora, quando explode a questão da segurança, ele abstém-se de dar qualquer declaração por exatos oito dias, período em que trafegou pelas ruas de Nova York. Sabedor do desgaste que a administração estadual colhe com o apagão na área de segurança pública, Serra diz o seguinte:
“Às pessoas de bem só cabe uma postura [diante do ocorrido]. De maneira clara, direta, insofismável, sem ambigüidades, é preciso dizer: ‘Somos contra o crime; somos contra os criminosos que nos desafiam, que desafiam as leis, que desafiam as regras da convivência civilizada, que desafiam o poder público, síntese da vontade de todos os cidadãos’".
Mais adiante, ele escreve:
“A crítica ao Judiciário, aos governos, à polícia, ao Ministério Público, à legislação, à desigualdade social, às falhas do sistema educacional, tudo isso pode ser mais ou menos pertinente. Mas é preciso distinguir o essencial do circunstancial. E o essencial é identificar o inimigo. Até para que não se cometam injustiças fazendo baixa sociologia”.
No fim, José Serra propõe o endurecimento penal aprovado por comissão do Senado Federal. Nas palavras do peessedebista, a questão toda é dividida, de forma maniqueísta, entre “pessoas do bem” e do mal. Coisa de gibi.
O PÂNICO COMO INTIMIDAÇÃO
A retórica agressiva da direita tem objetivos pouco evidentes. Trata-se de usar o pânico como elemento de coação social, a justificar um endurecimento da legislação e dos mecanismos repressivos. O alvo é não apenas a criminalidade explícita, mas a intimidação do movimento popular, através da geração de uma sociedade policial. Não é à toa que editoriais e artigos de grandes jornais tentam a todo custo colar, por exemplo, no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a pecha de “quadrilha” ou de “terrorista”. Criminalizar e intimidar organizações populares é uma das metas mais claras do conservadorismo. Com um agravante: o surto repressivo pode ser desencadeado com ampla legitimidade de uma sociedade – especialmente a classe média - apavorada.
Pode-se fazer uma analogia com o clima repressivo criado pelo governo dos Estados Unidos após o 11 de setembro de 2001. O mote de “endurecimento” é o caldo de cultura para situações perigosas já vividas no Brasil e em outros países. É bom lembrar que, na semana anterior ao ataque do PCC, a direita brasileira amargara uma derrota no terreno das idéias, no episódio da nacionalização do gás boliviano.
Externando discursos intolerantes de pretensa defesa nacional, sua pregação caiu no vazio diante da realidade. Agora ela agarra-se à tábua da insegurança em seu coro dirigido especialmente à classe média.
Afinal, a classe média correu mesmo riscos naquela segunda-feira (15) caótica? É difícil dizer. Mas alguns fatos devem ser notados: embora alguns assaltos tenham acontecido naquela segunda no centro expandido da capital paulista, praticamente não houve mortes. Quem pagou com a vida foram policiais empobrecidos, pegos de surpresa pela absoluta incapacidade de planejamento da Secretaria de Segurança e a população da periferia. Quase a totalidade das 109 mortes de civis aconteceu em bairros pobres e periféricos. Já existe uma geografia humana e uma característica de classe na matança desses dias.
Por mais que o neandertahlismo tente chamar as vozes discordantes de “baixa sociologia”, é sempre bom lembrar onde o crime viceja. É no país com a pior distribuição de renda do mundo, no qual a juventude entre 15 e 24 anos enfrenta taxas de desemprego de até 50% e onde a propriedade da terra e os meios de comunicação estão, em sua maior parte, nas mãos do topo do topo da pirâmide social.
Esquecer dessas questões fundamentais não é fazer alta sociologia. É fazer a apologia da barbárie.
MERCADO NÃO SENTIU
Ao mesmo tempo em que São Paulo vivia seu inferno astral, o chamado “mercado” não estava nem aí. O que importou mesmo na semana passada foi a expectativa de alta dos juros nos EUA e a vulnerabilidade externa da economia brasileira. Esse fato contribuiu para seguidas quedas na bolsa de valores de São Paulo e uma pequena alta do dólar. A venda de moedas e títulos brasileiros por parte de grandes conglomerados, que migraram para posições mais seguras na bolsa de Nova York, não tem nada a ver com PCC ou corre-corre nas ruas da capital paulista.
A Folha de S. Paulo de quarta-feira (18) trouxe a declaração de Maristella Ansaldi, economista-chefe do Banco Fibra: "Em termos de imagem [no exterior], é bastante ruim a violência que atinge a cidade. Tem atrapalhado um pouco os negócios, mas não chegou a afetar ainda os preços dos ativos".
Em outro segmento do mesmo mercado, aquele que rege a vida dos nababos – o topo do topo da pirâmide social – também não havia maiores preocupações. Os jornalões paulistas apresentaram generosas páginas de anúncios com o slogan: “Prepare-se. Neste sábado você vai conhecer uma nova perspectiva de vida”. A farta publicidade é centrada no empreendimento Parque Cidade Jardim, na zona sul de São Paulo, conjunto de nove torres residenciais, com apartamentos vendidos por até R$ 18 milhões. Cerca de cem apartamentos, com valores a partir de R$ 2 milhões já foram vendidos. A única referência à situação da semana, na Folha de S. Paulo, da mesma quarta-feira, foi que “Por motivos de segurança, a empresa não revela o nome dos compradores”.
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista da Agência Carta Maior, é autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo). Foi observador, a convite do CNE, do processo do referendo revogatório na Venezuela.
Violência e desigualdade social: o tamanho do problema
BRASIL, MOSTRA A TUA CARA http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11285
Em dois anos, meio milhão de brasileiros deverão estar atrás das grades. Mantendo-se a tendência atual, seria preciso construir um novo presídio a cada 15 dias. Ao mesmo tempo, Brasil possui a segunda maior frota de helicópteros particulares do mundo. Aonde isso vai dar?
Marco Aurélio Weissheimer - Carta Maior
A explosão de violência que se abateu sobre São Paulo, em maio, e que, com intensidades variadas, faz parte do cotidiano de centenas de cidades brasileiras, por si só é suficiente para mostrar que estamos todos sentados sobre uma bomba-relógio. Não é o caso de falar de uma bomba-relógio prestes a explodir, pois ela vem explodindo e se retro-alimentando sucessivamente. Tampouco parece ser o caso de resumir o problema à ausência de políticas públicas na área da segurança ou à falta de recursos. Há algo mais profundo que parece ter se rompido, deixando a sociedade brasileira flutuando sobre um caldo de cultura de desagregação e de anomia. O crescimento da desigualdade social nas últimas décadas e a escandalosa concentração de renda no país compõem um cenário de profunda violência institucional e não-institucional. O convívio da opulência e do luxo, de um lado, e da miséria, de outro, já fez acender o sinal vermelho há um bom tempo. Mas permanecemos, em boa medida, cegos, surdos e mudos.
É verdade que não basta afirmar a existência da desigualdade social para equacionar o problema da violência. Há diversas faces desse problema que exigem medidas de curto prazo, que não podem esperar pela diminuição consistente dos níveis de desigualdade, o que só ocorrerá no longo prazo. Mas, mesmo os problemas imediatos, como a falência do sistema penitenciário brasileiro, só podem ser entendidos em toda a sua extensão, se considerarmos o que ocorre também fora das prisões. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibcecrim), de São Paulo, em dois anos, meio milhão de brasileiros estarão atrás das grades. Hoje esse número é de aproximadamente 340 mil. De acordo com essa tendência, e conforme as normas de organizações internacionais de direitos humanos que sugerem um máximo de 500 pessoas por presídio, seria necessário construir um novo presídio a cada 15 dias.
BRASIL: UMA PRODUTIVA FÁBRICA DE PRESOS
Somente as cadeias de São Paulo recebem, em média, 800 presos por mês. A falta de perspectivas dentro e fora das prisões e a fragilidade dramática das políticas de reintegração fazem com que o índice de reincidência e retorno às prisões seja muito alto. Assim, além do fluxo contínuo de novos encarcerados, as próprias prisões funcionam como alimentadores do fluxo criminal. No Rio de Janeiro, segundo estimativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, pelo menos 70% da população carcerária tem envolvimento com o tráfico. Não há dados oficiais, mas o índice de reincidência no Rio de Janeiro pode atingir a casa dos 80%. Ou seja, em resumo, temos uma combinação macabra de ausência de recursos para a construção de novos presídios e para o desafogamento dos atuais convivendo com uma fábrica que não cessa de produzir novos detentos.
Uma carta da juíza Sonáli Zluhan, publicada no jornal Zero Hora (coluna do jornalista Paulo Santana, em 27.05.2006), ilustra esse quadro: “Sou juíza em Caxias do Sul, na Vara de Execuções Criminais. Aqui o presídio se chama INDUSTRIAL, no entanto os presos não têm trabalho. As vagas oferecidas são 296 e atualmente a lotação é de 750 presos. Cada cela para quatro pessoas tem mais de 12. O albergue, que abriga os presos do regime aberto e semi-aberto, com serviço externo, com 95 lugares, tem mais de 200. Eles têm dormido sentados, na laje (em Caxias faz muito frio) ou em cima das mesas e no chão. Não existem colchões para todos, apesar de já terem sido solicitados para a Susepe (Superintendência de Serviços Penitenciários do RS), mais de uma vez. Somente após eu haver interditado o presídio por duas vezes é que se iniciou a obra do novo presídio, com 450 vagas. E, apesar de a obra já haver começado há mais de ano, não tem previsão para terminar”.
GUERRA CIVIL: EXAGERO?
A juíza Zluhan prossegue seu relato: “Os presos não têm qualquer assistência médica ou odontológica, dependemos do serviço de voluntários que, esporadicamente, aparece. Temos presos com Aids, tuberculosos, com câncer, e estes recebem remédios graças à Pastoral Carcerária, que arrecada fundos para medicamentos”. Essa é a realidade comum à esmagadora maioria dos presídios brasileiros. E o que a sociedade tem a ver com isso? Tudo, obviamente. Mais do que pode parecer à primeira vista. Por ocasião da recente onda de violência em São Paulo, multiplicaram-se sentimentos favoráveis à pena de morte, à execução de criminosos sem qualquer tipo de procedimento legal e ao abandono da população carcerária a sua própria sorte. Em um certo sentido, esses sentimentos já viraram realidade, pois convivemos diariamente com todas essas práticas.
Em seu livro “Guerra Civil – Estado e Trauma” (Geração Editorial), Luís Mir, escreve: “O Estado brasileiro optou pela guerra civil, uma guerra dolorosa que empilha cadáveres com frieza nazista e fúria primitiva. As vítimas desta guerra são os pobres, que vivem em permanente estado de tensão e terror. As mortes desta guerra chegam a 150 mil por ano e elas custam, para o Estado, metade do que o país gasta com saúde”. O problema é que a quase totalidade dessas mortes não tem qualquer repercussão na mídia. Ninguém fica sabendo nada sobre elas. O nome das vítimas, o que faziam, o que suas famílias (aqueles que ainda tinham) sentiram e sofreram, quais foram os projetos de vida interrompidos: todas essas informações cairão para sempre no esquecimento; todas essas histórias de vida, é como se nunca tivessem existido.
ALGUNS NÚMEROS INCÔMODOS
Se não for por outra razão, pode-se argumentar, em relação a esses sentimentos e posições a favor da pena de morte e do extermínio, que, do ponto de vista de sua eficácia, eles são absolutamente insuficientes e pífios. Seus defensores pregam tais práticas como solução para o problema da criminalidade. Mas estariam dispostos a assumir as conseqüências de tais posições? Estariam dispostos a apoiar uma matança generalizada de todos os criminosos e presidiários do país? E de todos os futuros violadores da lei? Em que isso resultaria mesmo para a sociedade? A defesa dessas teses equivale a declarar uma guerra contra milhares de pessoas, a esmagadora maioria delas oriunda dos extratos mais pobres da população. Afinal de contas, quem superlota os presídios brasileiros? E quem declararia essa guerra? O Estado brasileiro? Este Estado que tem uma dívida histórica para com seu povo e para com o que estabelece a Constituição do país? Lembremos alguns dados básicos sobre essa realidade.
No Brasil, os 10% mais ricos da população são donos de 46% do total da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres – ou seja, 87 milhões de pessoas – ficam com apenas 13,3%. Somos 14,6 milhões de analfabetos, e pelo menos 30 milhões de analfabetos funcionais. Da população de 7 a 14 anos que freqüenta a escola, menos de 70% concluem o ensino fundamental. Na faixa de 18 a 25 anos, apenas 22% terminam o ensino médio. Os negros são 47,3% da população brasileira, mas correspondem a 66% do total de pobres. O rendimento das mulheres é 60% do rendimento dos homens no mesmo posto de trabalho. No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto o Distrito Federal apresentou um PIB per capita de R$ 16.920 em 2003, o Estado do Maranhão ficou com apenas R$ 2.354 anuais por pessoa. Esses números são mais do que suficientes para indicar o gigantesco desafio que o país enfrenta para dar conta dos problemas da violência, da segregação e da desigualdade social.
HELICÓPTEROS: CÉU DE BRIGADEIRO?
A tendência histórica de concentração de renda e de propriedade no Brasil é um dos principais obstáculos a serem enfrentados. Países com renda per capita similar à brasileira têm 10% de pobres em sua população, enquanto nós estamos na casa dos 30%. Segundo dados oficiais, cerca de 55 milhões de brasileiros vivem em situação de pobreza. Destes, cerca de 22 milhões em um quadro de indigência. Ao mesmo tempo em que milhões de brasileiros enfrentam diariamente o drama da fome, o Brasil possui a segunda maior frota de aviões e helicópteros particulares do mundo. E São Paulo, que ganhou indesejáveis manchetes mundiais no mês de maio por causa da violência, abriga a segunda maior frota de helicópteros do mundo, perdendo apenas para Nova York. Segundo dados da Associação Brasileira de Helicópteros, a frota paulistana já tem mais de 330 aparelhos.
A causa da violência não é, obviamente, esse honroso lugar no ranking da frota de helicópteros. Esse índice é, na verdade, um sintoma. Um sintoma de uma doença que afeta a sociedade brasileira como um todo. É mais cômodo fazer de conta de que isso é um problema do governo de plantão e colocar-se na posição de vítimas a defender a pena de morte contra os “homens de má vida” que não souberam aproveitar as oportunidades quando estas apareceram. Mas, na verdade, o comodismo aqui é apenas aparente. O resultado destas disparidades atravessa nossas vidas diariamente, quando saímos às ruas, quando vamos à padaria, ao banco ou ao supermercado. Mais do que atravessa, ele nos afronta, nos enfrenta e nos ameaça. Diante dessa ameaça, a maioria tende a reagir exigindo que o Estado elimine quem lhes ameaça. Mas talvez a questão não seja “quem” ameace, mas sim o “que” ameaça. Os números sobre a realidade do sistema carcerário brasileiro são suficientes para mostrar que não há nenhuma solução mágica no horizonte.
O POVO DO ABISMO. LEMBRANDO JACK LONDON
Os presos continuam sendo “fabricados” diariamente em um escala que o Estado não tem capacidade financeira para dar conta. O que fazer, então? A solução é passar fogo na bandidagem, bradam muitos brasileiros. É mesmo? E de que bandidos estamos falando? Aqueles que moram na periferia, que acabam engrossando as fileiras do tráfico? E os que, por uma sorte na vida, andam de helicóptero e infringem a lei, também devem ser executados com um tiro na cabeça? E os policiais que, por uma série de razões, acabam se envolvendo com o crime, também merecem o mesmo destino? E os governantes que são cúmplices ou omissos diante desse quadro também devem ser executados? E que tal os eleitores desses governantes também merecerem responsabilização? Quem vai dar o primeiro tiro?
No início do século XX, o escritor norte-americano Jack London escreveu uma série de artigos sobre os miseráveis e desempregados que habitavam o East End londrino. Esses artigos resultaram em um livro, intitulado “O povo do abismo”, publicado no Brasil pela Fundação Perseu Abramo. Na abertura da edição brasileira, algumas dezenas de palavras de London nos lançam uma advertência. A prudência recomenda, ao menos, sua leitura:
“Os rejeitados e os inúteis! Os miseráveis, os humilhados, os esquecidos, todos morrendo no matadouro social. Os frutos da prostituição – prostituição de homens e mulheres e crianças, de carne e osso, e fulgor de espírito; enfim, os frutos da prostituição do trabalho. Se isso é o melhor que a civilização pode fazer pelos humanos, então nos dêem a selvageria nua e crua. Bem melhor ser um povo das vastidões e do deserto, das tocas e cavernas, do que ser um povo da máquina e do Abismo”.
O homem errado (Folha, 31.05.06)
LUÍS NASSIF
O homem errado
A tragédia da segurança em São Paulo tem o nome e o sobrenome do secretário da Segurança Pública
MESES ATRÁS , houve reunião da área de segurança com o ainda governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Algumas vezes, ao longo de seu governo, Alckmin foi obrigado a arbitrar conflitos entre o secretário da Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, e o da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa. Nessa reunião, presente também o secretário da Justiça, Alexandre de Moraes, Alckmin foi duro com Saulo. Chamou-o de "desagregador".
Desde que entrou no governo, em 2002, Saulo atuou de forma desagregadora, tramando desde o primeiro dia contra Furukawa, um juiz de sólida reputação e de ações inovadoras na área penitenciária. Contra ele, Saulo tentou cooptar o secretário da Justiça e o secretário da Educação, Gabriel Chalita, entre outros. Havia uma diferença fundamental entre ambos. Furukawa queria que a polícia se concentrasse prioritariamente em prender os chefões do crime, os criminosos efetivamente perigosos. Saulo dispersava a ação policial em sua política-de-estatística. Não interessava o grau de periculosidade dos presos, contanto que melhorasse suas estatísticas. Noventa por cento das prisões eram em flagrante, denotando baixíssimo resultado das ações de inteligência. Furukawa pretendia investir na construção de presídios, permitindo segregar as lideranças criminosas dos pequenos meliantes. Mas a explosão de prisões para crimes irrelevantes matava qualquer estratégia de combate profissional ao crime organizado. Lotaram-se os presídios, e os bagrinhos aderiram ou ficaram reféns dos tubarões do crime.
Mais que isso. Desde o governo de Mário Covas, havia uma determinação de que o comandante-geral da polícia não poderia falar diretamente com o governador, mas teria que passar, antes, pelo secretário da Segurança. Saulo se prevalecia desse controle sobre as informações para boicotar os colegas. Nem sequer há troca de informações entre a Polícia Militar e a Civil, para que o poder da informação não escape das mãos do secretário.
Se a polícia chega rapidamente, consegue estancar uma rebelião na Febem, na área de atuação da Secretaria da Justiça. Nas diversas rebeliões que ocorreram, o policiamento levava mais de uma hora e meia, porque Saulo dizia para o comando que só ele podia autorizar a operação. Quando havia uma rebelião nas penitenciárias, a polícia ficava sabendo em dez minutos; O secretário da Administração Penitenciária só era informado muito tempo depois. Além de se indispor com colegas, Saulo se afastou também do Ministério Público, conseguindo quebrar totalmente o contato entre o órgão e a polícia, que, aliás, nunca foi muito bom. Na cúpula do Judiciário paulista, a resistência é a mesma. Na área federal, jamais participou das reuniões entre secretários da Segurança de outros Estados, sob a alegação de que "minha polícia" é melhor do que todas as demais.
Por falta de conhecimento, de tempo para juntar as informações necessárias, o governador Cláudio Lembo, um homem de bem, deu cheque em branco para o homem errado. Mas a tragédia da segurança em São Paulo tem o nome e o sobrenome do secretário da Segurança Pública. @ - Luisnassif uol.com.br
Conseqüências Contemporâneas da Exclusão Social no Brasil
OS ATAQUES DO PCC: Conseqüências Contemporâneas da Exclusão Social no Brasil, por Felipe Corrêa
“Porque a opressão do Estado e a exploração capitalista são as formas típicas da violência organizada.” - Eduardo Colombo
Entre os dias 12 e 16 do mês de maio, a cidade de São Paulo – terceira maior metrópole do mundo – no Brasil, assistiu uma série de atentados orquestrados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). A explosão dos ataques deu-se na 6ª feira dia 12, quando 765 presos ligados ao PCC foram transferidos de presídio; foi então que a onda de ataques começou e durou por mais alguns dias, encerrando-se na 3ª feira dia 16. Neste período, dezenas de policiais foram metralhados e mortos, ônibus foram queimados pela cidade, presídios entraram em rebelião com vários presos sendo mantidos como reféns e a cidade vivenciou uma onda de pânico jamais vista. A rebelião foi articulada de dentro dos presídios, por meio de telefones celulares e estabeleceu uma onda de medo jamais presenciada pelos paulistanos. Ao mesmo tempo, houve resposta da polícia matando outras dezenas de civis que, segundo seu discurso, teriam morrido em confronto ou possuíam envolvimento direto com o PCC. Na 2ª feira dia 15, a cidade de São Paulo parou: o comércio fechou, as escolas cancelaram as aulas, as ruas estavam desertas às 20h. O povo impôs-se um toque de recolher, alimentado pelo temor dos acontecimentos e dos boatos que corriam. O conflito somente encerrou-se após uma negociação entre governo e PCC – cujo conteúdo está escondido a sete chaves – mas que é comprovada por uma série de fatores como, por exemplo, o envio da advogada do PCC em um avião da Polícia Militar cedido pelo governo do estado até o presídio de Presidente Bernardes, onde está preso Marcola, um dos grandes líderes do PCC. Em menos de um dia depois da “visita”, os ataques haviam acabado.
As raízes desse conflito expõem a cara de um Brasil que grande parte dos estrangeiros não conhece. Alguns poucos dados estatísticos do Brasil ajudam-nos a compreender a questão. De acordo com uma pesquisa divulgada recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 14 milhões de brasileiros passaram fome em 2004. O mesmo órgão divulgou, algum tempo antes, outras pesquisas que mostram que mais de 25% das famílias brasileiras vivem abaixo da linha de pobreza (IBGE, 1996), que mais de 13% da população são analfabetos – e 26% analfabetos funcionais – (IBGE, 2000-2002); além disso, mostra que mais de 30% da população não têm acesso regular a serviços de saúde (IBGE, 1998). Uma situação que expõe a falta de perspectiva daqueles que estão sofrendo as conseqüências da violência propagada pelo capitalismo globalizado. A pobreza que acomete grande parte do país provoca uma inversão de valores no povo explorado, que já não preconiza a solidariedade e a valorização da vida. Para ele, tudo o que pode conseguir está ligado às satisfações imediatas de consumo, estimuladas pela desigualdade social – o Brasil tem a segunda pior distribuição de renda do mundo. O crime organizado no Brasil, hoje, aproveita-se disso, oferecendo uma “perspectiva” aos marginalizados da sociedade, constituindo-se como uma triste e concreta proposta de se conseguir dinheiro, poder e status. Os relatos feitos pelo rapper MV Bill em seu livro Cabeça de Porco, quando estuda os jovens e o tráfico de drogas nas favelas brasileiras, mostram justamente isso: uma sociedade massacrada pela miséria e cujas vítimas, já sem qualquer perspectiva de melhorar de vida por meio de uma tentativa “digna”, se interessam pelo crime organizado e pelo tráfico de drogas, formando um verdadeiro exército de reserva que entra para o crime à medida que os atuais “soldados” vão morrendo. Imagine você o que passa na cabeça de um garoto que cresceu em um local de extrema pobreza, sem qualquer oportunidade para a educação ou a saúde, com a família em dificuldades extremas, a polícia matando seus parentes, a dificuldade do desemprego, etc, etc. O que acontece é que o crime organizado, para este jovem, passa a ser a única possibilidade concreta de ascensão social, de reconhecimento na comunidade – mesmo que seja pelo medo –, e a possibilidade de ser morto ou preso, simplesmente não o afeta, pois seus valores com relação à vida são outros. Da mesma forma que presencia membros da comunidade mortos quase que diariamente e pensa na vida mais como um sofrimento do que algo prazeroso, a violência torna-se mais parte do cotidiano do que ameaça. Ao ser perguntado sobre o medo da morte, um jovem traficante disse simplesmente: “se eu morrer, colocam outro no meu lugar e pronto”.
Interessante como a sociedade alienada, tende a analisar e julgar com todo seu ímpeto as conseqüências das coisas, mas é incapaz de questionar-se sobre as causas. Todos têm uma opinião formada sobre os ladrões, mas ninguém raciocina por que existem ladrões. Todos têm opinião formada sobre os presos, mas ninguém questiona por que existem presos. Todos têm opinião sobre a corrupção parlamentar, mas ninguém questiona por que isso acontece. Todos têm opinião sobre o Movimento Sem Terra, mas ninguém se questiona por que os sem-terra existem. Além disso, o maniqueísmo que divide tudo em certo e errado, correto e incorreto, bom e mau, mocinho e bandido, e que atualmente é muito defendido pela classe média e pelos maiores veículos da imprensa brasileira, acabam ressaltando elementos reacionários do Estado, que no fundo sustentam o status-quo que produz diariamente esta situação. Quando questionado sobre o “exagero” da polícia na repressão dos ataques feitos pelo PCC, por exemplo, o rabino Henry Sobel admitiu que aconteceu um exagero, mas justificou, dizendo ao jornal Folha de São Paulo que “numa batalha entre o bem e o mal, um pouco de exagero por parte daqueles que defendem o bem é melhor que uma possível omissão”. “O bem e o mal”? “Aqueles que defendem o bem”? No caso da repressão aos crimes do PCC, a polícia paulistana foi responsável pela morte de dezenas de civis, muitos deles mortos com tiros a curta distância na cabeça, alguns inclusive na parte de trás, o que nos dá sinais de execução. Outras situações foram comuns: os atingidos não morriam no local, sendo colocados nos carros da polícia (e a cena do crime era desarrumada) e com freqüência, chegavam ao hospital mortos. Não há como afirmar que não aconteceram execuções no caminho para o hospital. Os policiais aproveitaram ainda o caos gerado pelos ataques do PCC e iniciaram uma série de “acerto de contas” com seus desafetos e, como muito se relatou na imprensa brasileira, acabaram responsáveis pelas mortes de vários inocentes. Além disso, sabe-se que grande parte da polícia do país está ligada ao crime organizado, atuando em diversas frentes que vão desde a venda de armas e a extorsão por meio de subornos, até a plena integração de polícia e crime organizado, em determinadas regiões.
Apesar disso, ganham espaço os argumentos da direita que preconizam repressão mais dura aos criminosos, a discriminação dos pobres, o fim dos direitos humanos e o recrudescimento no tratamento de presos. Ouviu-se nesses dias, com freqüência, argumentos como: “a polícia deveria colocar fogo nos presídios”, “esse povo favelado tem que morrer” ou “os direitos humanos são para os humanos direitos”. Repugnante como a classe média, em grande medida, endossou esse discurso reacionário e que beira o fascismo.
É importante ressaltar que o PCC não possui elementos ideológicos que possam ser valorizados por qualquer um que preconize valores libertários, que busque democracia ou justiça social. As tiranias do PCC, assim como das outras organizações do crime organizado no país, como o Comando Vermelho do Rio de Janeiro, dependem completamente do Estado e do Capital; buscam dinheiro, domínio e poder, reproduzindo por trás de seu discurso contra a opressão e a administração penitenciária, uma forma de “governo” altamente centralizado, hierárquico e autoritário. Dessa forma, constitui-se em um “micro-Estado” que explora seus “cidadãos”, que têm de pagar em torno de R$ 7 mil por ano (aproximadamente 2400 Euros), em troca de proteção na cadeia e apoio à família. No discurso do PCC nunca se encontra uma critica ao capitalismo, ao sistema de distribuição de renda, à desigualdade ou à pobreza. Se podemos classificá-lo de alguma forma, ele está muito mais para uma organização mafiosa do que para uma organização revolucionária ou um movimento social.
Mais triste do que esses reflexos – que colocam à mostra as vísceras mais bizarras do capitalismo – é ver que não há qualquer perspectiva de solução a curto ou médio prazo. Na seqüência desses acontecimentos, já que é ano de eleições, o PT (responsável pelo governo federal do país e que tem Lula como candidato à reeleição) acusava a administração do PSDB (que teve em Alckmin o governador do estado de São Paulo e que agora deixou o cargo para concorrer à presidência da República) pelo acontecido, já que detém a responsabilidade pela administração dos presídios. O PSDB, ao mesmo tempo, dizia que responsável pelo acontecido era o governo do PT, pois havia cortado investimentos na área de segurança. Acusações mútuas cujo objetivo não era resolver o problema, mas sim preparar terreno para as eleições de outubro, utilizando o acontecido como arma política. Após o acordo feito entre governo e PCC, tudo voltou ao “normal”. Talvez se faça algum investimento na área de segurança, talvez se consiga uma verba ou outra para diminuição da pobreza, mas nada que dê uma perspectiva para a solução desse problema. Mesmo com esses acontecimentos, que colocaram uma série de questões na ordem do dia, poucos foram aqueles que refletiram minimamente, e tentaram buscar as raízes do conflito, pensando o problema social de hoje. Poucos foram aqueles que, além das políticas que visam enxugar o gelo, puderam refletir sobre como resolver a questão. Enfim, a essa altura dos acontecimentos não sei como é possível as pessoas considerarem “o bem” um Estado reacionário, opressor, burocrático e corrupto que aliena o povo a cada dia, e um capitalismo que aumenta a exploração, a desigualdade e que não oferece qualquer perspectiva de solução para essas questões. Isso sim é que é violência; contra o bom-senso.
Número de mortos
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121935.shtml http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121937.shtml http://noticias.correioweb.com.br/materias.php?id=2672916&sub=Brasil
Justiça decreta sigilo na investigação das 13 mortes - 28/06/2006
Medida impede a divulgação de informações do caso, como os laudos do IML Nenhum órgão assumiu ter pedido segredo de todo o inquérito; assessoria do TJ se negou a informar o autor da solicitação feita ao juiz
GILMAR PENTEADO DA REPORTAGEM LOCAL http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2806200601.htm
A Justiça de São Bernardo do Campo (Grande SP) determinou ontem sigilo nas investigações sobre as mortes de 13 pessoas supostamente ligadas ao PCC (Primeiro Comando da Capital). Elas foram mortas pela polícia anteontem, antes do que seria uma tentativa de ataque a agentes penitenciários.
O sigilo foi determinado pelo juiz Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi, de São Bernardo. A medida impede que a imprensa e entidades de direitos humanos, que apuram possíveis abusos da polícia, tenham acesso aos dados do inquérito, inclusive os laudos necroscópicos.
Nenhum órgão, no entanto, assumiu que pediu o sigilo de toda a investigação à Justiça. O delegado Marco Antonio de Paula Santos, chefe da Delegacia Seccional de São Bernardo, afirmou ontem que a proibição de divulgação de qualquer dado do inquérito foi uma solicitação do Ministério Público.
Ele nega que o pedido tenha partido da polícia. Segundo Santos, que afirma que a ação foi regular, a Promotoria visava resguardar as investigações.
O promotor Nelson Silveira Júnior, designado para acompanhar o caso, dá uma versão diferente. Ele afirma que pediu ontem à Justiça que decretasse sigilo apenas do conteúdo das escutas telefônicas feitas durante a investigação, e não sobre o inquérito completo. A polícia monitorava os suspeitos, por grampos, pelo menos dez dias antes do suposto ataque.
"O pedido era apenas para resguardar as interceptações telefônicas, sigilo já previsto na legislação brasileira. Se houve um pedido de sigilo de todo o inquérito, não foi o Ministério Público quem fez", afirmou o promotor.
A assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo confirma que a decisão do juiz concede sigilo para o inquérito inteiro. Mas a assessoria, em uma posição totalmente incomum, disse que não poderia informar quem foi o autor ou a instituição responsável pelo pedido de sigilo.
O autor da solicitação estaria protegido pelo sigilo, segundo a assessoria. A Folha apurou que o juiz Lanfredi decidiu pelo sigilo total levando em consideração um pedido da polícia.
"Se o sigilo também valer para a investigação das 13 mortes, vai atrapalhar a apuração das entidades. Não teremos a transparência das investigações", afirmou Ariel de Castro Alves, do Movimento Nacional de Direitos Humanos.
Momentos antes da decretação do sigilo, Alves tinha conseguido a promessa da polícia de São Bernardo de acesso nos próximos dias aos documentos do inquérito referentes às mortes. "Se for preciso, pediremos à Justiça o acesso aos dados."
Familiares ouvidos pela Folha confirmaram o envolvimento de alguns dos mortos com o PCC. Mas também afirmaram acreditar que os suspeitos foram mortos sem chance de defesa. Além dos 13 mortos, cinco pessoas foram presas. Elas negaram envolvimento com o ataque ou com o PCC.
Grampos
Segundo a polícia, a facção pretendia matar de cinco a 15 agentes penitenciários. Anteontem pela manhã, três funcionários do CDP (Centro de Detenção Provisória) de São Bernardo estavam para serem atacados quando a polícia, que monitorava o local, afirma ter feito a abordagem.
Trechos de escutas telefônicas feitas pela polícia na semana passada mostram conversas entre dois suspeitos depois que um deles teria monitorado a troca de turno dos agentes no CDP de São Bernardo.
"Às 7h30 saiu alguma coisa?'", questiona um deles. "Não saiu nada de lá", disse o outro. Na seqüência, um deles fala: "É o seguinte. A irmã [membros do PCC se chamam de irmãos e irmãs] foi para lá, entendeu? Deu 7h30 saiu uma "Kombona" lotada. E chegaram uns três, quatro a pé".
O outro insiste que a observação não deu resultado: "Eu fiquei sozinho lá. Encostei o feroz [carro], abri o capô e fiquei lá. Não colou [apareceu] ninguém". E segue: "Sabe o que é, também. Depende do plantão, às vezes".
Ontem, distritos policiais e bases da PM da capital e do ABC reforçaram a segurança durante o jogo do Brasil temendo atentados. O alerta foi dado pelo governador Cláudio Lembo (PFL). Anteontem, Lembo afirmou que houve ameaças de ataques durante o jogo contra o Japão, na quinta-feira passada.
PCC conquista favela com leite e comida - Folha de São Paulo, 02/07/2006
Facção responsável pela maior onda de violência de SP cria uma espécie de programa social em ponto de venda de drogas
Grupo criminoso entrega também gás de cozinha, remédio e enxoval de bebê na comunidade Pedra sobre Pedra, zona sul da capital
KLEBER TOMAZ DA REPORTAGEM LOCAL http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0207200601.htm
Em um cenário desenhado por morros tomados por barracos, lixo, esgoto a céu aberto e onde carteiros, lixeiros e serviços sociais não chegam, a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) montou, com o apoio dos moradores, uma de suas bases de venda de droga em São Paulo. Em troca, criou uma espécie de programa assistencial, batizado de Ajuda da Correria para o Social, que distribui leite, gás e cestas básicas a 200 famílias cadastradas. "Correria" significa crime na linguagem das ruas.
Com o conhecimento de parte das cerca de 36 mil pessoas que moram na favela Pedra sobre Pedra, em Cidade Júlia, zona sul paulistana, a venda e o preparo da droga -maconha e cocaína- são feitos à luz do dia. Mas os traficantes são apenas alguns dos soldados da facção. Recebem ordens de dois presos, que comandam até a distribuição dos alimentos na favela.
"Para vocês da cidade o PCC traz medo, para nós da favela traz leite", afirma a empregada doméstica Lúcia, 19, uma das cadastradas no "programa". Por segurança, a Folha usa nomes fictícios para preservar a identidade dos moradores.
"O partido [PCC] ajuda mais a gente do que o governo. Minha mulher está desempregada. Tem de ir à cidade, pegar ônibus e passar por um bando de burocracia para ser cadastrada em um programa social. Aqui é tudo rápido", afirma o marceneiro João, 27.
O PCC distribui, por semana, 150 sacos de dois quilos de leite em pó, cem litros de sopa e até 60 botijões de gás de cozinha. O "programa" também inclui remédios e enxoval de bebê, que são distribuídos até mesmo a quem não é cadastrado. Favorece principalmente 97 famílias de uma área de risco, na parte baixa da favela. Os alimentos são comprados com o dinheiro da venda das drogas ou cedidos por comerciantes por ordem da facção. "Eu jamais vou falar mal deles [dos membros do PCC] ou dedurá-los à polícia. Não me fazem mal. Um dia meu menino teve febre alta e eu estava sem dinheiro para comprar remédio. Expliquei o que houve a um funcionário do partido, que depois voltou com o dinheiro na mão e fui à farmácia", diz Bruna, 30, mãe de duas crianças e já grávida de outra.
Outras favelas também estariam sendo favorecidas pelos criminosos da facção, responsável pela pior onda de violência no Estado, em maio deste ano, quando mais de 40 agentes de segurança foram assassinados. A polícia de São Paulo diz que investigará a ocorrência do assistencialismo.
De acordo com uma liderança comunitária, o único programa social do Estado que chega à favela é o Viva Leite, para 200 famílias. O local tem só uma escola e um posto de saúde. "Se você está com a panela vazia, ele [o PCC] dá comida. O PCC vê nosso lado da favela", fala o traficante Cláudio, 32, que recebe ordens de membros da facção de dentro das cadeias para distribuir os alimentos.
Para moças da favela, bom partido é PCC - Folha de São Paulo, 02/07/2006
Em busca de respeito dos moradores, roupas e dinheiro, garotas procuram namorar os membros da facção criminosa
Infidelidade costuma ser aceita e há escala na relação, em que as amantes são as terceiras-damas, abaixo da mulher e da namorada
DA REPORTAGEM LOCAL http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0207200604.htm
Na frente do casebre de alvenaria, um varal repleto de roupinhas coloridas de nenê dependuradas. Além de crianças, o local abriga quatro mulheres. Todas já são mães, e duas delas estão grávidas novamente -sendo que uma, morena de cabelos negros e longos, namora um gerente do PCC (Primeiro Comando da Capital).
"Dá status namorar alguém do partido. Você é sempre respeitada por onde quer que passe. Ninguém, nunca, irá te tirar do sério porque sabe que poderá pagar por isso", conta Silvana (nome fictício), 27, que mora na favela Pedra Sobre Pedra.
Assim como ela, muitas outras mulheres buscam um homem ligado à facção criminosa na região. Lá, o significado de bom partido tem de vir acompanhado da sigla PCC.
"Se o cara for da facção, melhor. Ao mesmo tempo é um risco, mas a mulher não se envolve nas reuniões. Fica de fora. Ela só dá o amor", sorri Silvana, que há quatro anos disputou o seu homem com outras.
"Assim como eu, muitas estão à procura de um cara do partido. Eles nos dão roupas, enxoval de criança, nos levam às festas e ainda pagam a conta", narra ela, que já teve um filho com o namorado. O pai da criança aparece eventualmente, diz, para dar dinheiro a ela, que gasta quase tudo com roupas e comida para o nenê. É um exemplo da ampliação da atuação do grupo criminoso, que já ajudava parentes de detentos e agora tem a rede para boa parte da comunidade.
Para se aproximar dos seus alvos, a tática das mulheres é partir para o ataque. Curtir rap, funk, usar calça de cintura baixa bem apertada e rebolar muito nas festas ganha pontos. "As meninas ficam num canto só marcando o gatinho que querem. Elas geralmente sabem quem é do partido", diz ela, que não quer nem pensar na possibilidade de já ter sido traída.
A infidelidade na favela, principalmente por parte de traficantes e membros do PCC, é geralmente aceita por suas namoradas e até pelas mulheres.
Geralmente a mulher é conhecida como primeira-dama. As namoradas são batizadas de segundas-damas. As amantes ganham o posto de terceira-dama e assim por diante.
"Não importa se meu negão vai ficar beijando ou transando com outra por aí. O que vale é que ele me dá tudo e todos me cumprimentam por onde eu passo. Sou tratada feito rainha", afirma Joana, 27. Seu marido é um "funcionário" do partido. Realiza pequenas tarefas de ordem operacional dentro da favela Pedra sobre Pedra, como dar recados.
Ana, 30, é uma das primeiras-damas do "clube da luluzinha" das mulheres do PCC. Segundo ela, o fato de namorar alguém da facção acaba levando a mulher para o mundo do crime. "Como a gente ama o homem do nosso lado, muitas vezes nos vemos participando do tráfico, como olheiras. Dizemos se a polícia vem ou não nas biqueiras [onde é feito o tráfico]."
Apesar de se envolver no comércio de cocaína, ela diz que já não é mais viciada e que a droga nem é vista por seus filhos. "O único pó branco que deixo entrar aqui é o leite que eles [membros do PCC] me dão." Já Cláudia, 20, ainda busca seu partido. Ela quer o respeito dos demais moradores e conta que jamais namoraria policial.
"Antes do partido a polícia invadia nossas casas", fala Cláudia, que não sabe como dizer à mãe que está a fim de um "falcão" (vigia armado). "Mamãe é evangélica, mas acho que gostaria de ganhar um sofá novo." (KLEBER TOMAZ)
Detento do PCC contrata prostituta pelo celular
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u123426.shtml
ANDRÉ CARAMANTE da Folha de S.Paulo
A facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) descobriu uma nova maneira de utilizar os telefones celulares nas prisões do Estado para fazer negócios: além de articular rebeliões em série e ordenar a morte de agentes das forças de segurança, hoje, os integrantes do grupo criminoso também contratam prostitutas.
A inovação não pára por aí: além de combinar preços e quais detentos terão direito de receber esses serviços, os homens do PCC criaram um esquema que, com o auxílio de aparelhos celulares que enviam e recebem fotos, permite escolher o tipo físico da mulher que desejam receber dentro de sua cela na penitenciária.
Escutas telefônicas autorizadas pela Justiça obtidas pela Folha, feitas na região oeste do Estado, onde existem 35 presídios (com 32 mil detentos), comprovam que uma mulher identificada como Jaqueline, que também é mãe-de-santo e cartomante, é uma das responsáveis por agenciar garotas de programa para os líderes do PCC que estão presos na região.
Nas conversas mantidas entre Jaqueline e um preso identificado como Moringa, um dos "sintonias" (responsável pela retransmissão de ordens da cúpula da facção criminosa para outros detentos e até para membros do grupo soltos) do PCC no interior do Estado, eles combinam a contratação, por R$ 200, de uma prostituta identificada como Sabrina. Por lei, o preso tem direito de fazer sexo com sua mulher ou amásia, diante de comprovação.
Quando trata do agenciamento das prostitutas para os homens do PCC, sempre pelo celular, Jaqueline também frisa que eles terão de arcar com as despesas de transporte e hospedagem das mulheres.
Na época do agenciamento para a prostituição, Moringa, cujo primeiro nome é Anderson, estava preso na penitenciária de Getulina (462 km de SP). Hoje, ele está em Presidente Venceslau 2 (620 km de SP), ao lado de outras 400 lideranças do grupo criminoso.
Moringa, de acordo com a advogada Valéria Dammous -detida na última quarta-feira e que teria recebido R$ 20 mil da facção-, deu a ordem para que cinco funcionários do presídio de Presidente Venceslau fossem assassinados.
Na conversa em que Jaqueline agencia a mulher para Moringa, ele demonstra interesse na garota de programa Sabrina e diz que "não tem muito tempo a perder" e, por isso, "não quer muita conversa com ela".
Nos grampos telefônicos, Jaqueline demonstra também preocupação com o bem-estar de um parceiro de Moringa, o detento DKD, que também estava na unidade de Getulina. Ela pede que ele não comente com o amigo que Sabrina irá "visitá-lo", pois, dias antes, a cartomante jogou cartas para uma mulher, namorada de DKD, e percebeu que essa não merecia ser traída. O jogo de cartas foi acompanhado pelo detento pelo telefone celular.
A Secretaria da Administração Penitenciária do governo Cláudio Lembo (PFL) disse apenas que "o preso tem direito a um rol de visitas com oito pessoas, composto por parentes de 1º e 2º graus e amásia com vínculo comprovado".
Presidente da OAB-SP contesta declarações de Lembo
08/07/2006 - 11h28 da Folha Online http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u123669.shtml
O presidente da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo, Luiz Flávio Borges D'Urso, contestou as declarações do governador Cláudio Lembo (PFL), que criticou a postura da entidade diante da crise do sistema prisional do Estado.
O governador disse na sexta-feira que a OAB está "fragilizada" por causa do número de advogados a serviço do crime organizado. "A OAB tem de fazer uma grande reflexão e não simplesmente ter frases fortes contra o governo", afirmou Lembo.
Em nota oficial, D'Urso destacou que somente o presidente da OAB pode se manifestar em nome da entidade e que em nenhum momento houve "crítica dura" dirigida ao Estado no ofício enviado à Secretaria de Administração Penitenciária na última quinta-feira.
No documento, D'Urso solicitou providências urgentes para que fosse regularizada a situação no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Araraquara. "[Não houve] motivo para que o governador se sentisse amargurado. Apenas buscou-se defender a normalização da unidade prisional no estrito cumprimento dos princípios constitucionais e legais", declara o advogado na nota.
D'Urso também ressaltou que a OAB não está fragilizada, pois é formada por 250 mil advogados que trabalham honestamente, dentro da lei e observando os preceitos éticos profissionais, o que fortalece a entidade.
Porém, quando "um ou outro advogado se desvia da ética, o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP tem pronta resposta", justificou D'Urso.
O presidente da Ordem salientou ainda que os casos de desvios éticos na advocacia representam exceções diante da "universalidade da classe".
Folha Online Especial: São Paulo Sob Ataque 2006
http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2006/saopaulosobataque/
Presos concordam em ajudar na reforma
Detentos que estão isolados em presídio de Araraquara (SP) conversaram ontem com o senador Eduardo Suplicy (PT).
Os homens reunidos no pátio que está com as portas soldadas relataram a falta de condições para dormir e até para tratar dos doentes
LAURA CAPRIGLIONE, ENVIADA ESPECIAL A ARARAQUARA (SP) (Folha de São Paulo, 07 de julho de 2006)
Foram três horas de silêncio absoluto no Anexo de Detenção Provisória da Penitenciária de Araraquara, só quebrado pela voz de um preso narrando como tem sido a vida desde que 1.443 detentos foram confinados em uma área de 600 metros quadrados, no dia 16 de junho.
Todos os homens sentaram-se no chão de asfalto do Anexo para receber o senador Eduardo Suplicy (PT), que foi à cadeia ontem à tarde, checar as condições da prisão.
Como a porta da detenção está lacrada a solda, Suplicy conversou com os presos do alto da torre de controle, sem contato físico com eles. "Foi a situação mais dramática que já vi em uma cadeia", relatou o senador. Suplicy afirmou que os detentos têm de dormir encostados uns nos outros, porque não há espaço para todos. O setor tem 16 celas, cada uma com oito camas. No chão de cada cela, podem dormir mais dez presos. A capacidade máxima total das celas, portanto, é de 288 homens. Isso significa que 1.155 pessoas são obrigadas a dormir ao relento, no pátio, sob temperaturas que nesta época do ano chegam a 10C. Como proteção, apenas cobertas leves. Disciplinadamente, ontem à tarde, 107 presos doentes levantaram-se um a um, em silêncio, para mostrar os ferimentos que têm nos corpos.
O médico Hosmany Ramos, discípulo de Ivo Pitanguy, ex-cirurgião plástico de socialites, ex-freqüentador de colunas sociais cariocas e condenado em 1981 por homicídio, roubo de jóias e carros, tráfico de drogas e contrabando, apresentou-se no final da conversa para reivindicar iluminação, pelo menos na enfermaria que ele improvisou no anexo.
Todo o prédio é mantido às escuras, segundo os agentes, para evitar que os presos com celular possam recarregá-los. Ramos também pediu medicamentos, como coquetel antiviral para soropositivos, e a remoção imediata de 37 doentes graves para hospitais.
Suplicy perguntou quem aceitaria trabalhar na reforma do prédio. Todos levantaram as mãos, candidatando-se.
Habitabilidade
Do diretor da penitenciária, Roberto Medina, o senador conseguiu a promessa de que, na próxima segunda, metade dos presos será removida para pavilhão de igual tamanho do atual. Na sexta, um terceiro pavilhão deverá ter condições de habitabilidade, desafogando a superpopulação hoje existente.
Medina, segundo o senador, também se comprometeu a enviar amanhã uma equipe de médicos para avaliar o estado clínico dos presos -até agora, todo o atendimento vem sendo feito por Hosmany, já que o médico da penitenciária não pode entrar no recinto lacrado.
Ameaça
Às 10h30, quando o helicóptero modelo Robson 22 com a repórter-fotográfica Marlene Bergamo a bordo aproximou-se da penitenciária para fazer as fotos desta edição, guardas da muralha do presídio usando máscaras ninja apontaram suas armas em direção à aeronave.
Às 10h, a direção da penitenciária foi avisada pela reportagem de que o vôo seria feito dali a meia hora e que a bordo estaria uma fotógrafa da Folha.
Com o helicóptero já no ar, um carro da Polícia Militar aproximou-se da reportagem. Um soldado avisou: "Se o helicóptero cruzar a área da penitenciária, a ordem é abater". As fotos foram feitas com uma lente teleobjetiva de 500 mm com duplicador.
Governador culpa detentos por caos em penitenciária
Lembo admite ser dramática a situação em Araraquara; hoje, 107 presos serão encaminhados para exame médico
Pefelista afirma que local será reformado a partir de segunda-feira, mas não irá transferir os presos por falta de vagas em presídios
DÉBORA FANTINI, COLABORAÇÃO PARA A FOLHA (Folha de São Paulo, 07 de julho de 2006)
O governador Cláudio Lembo (PFL) admitiu ontem ser "dramática" a situação dos cerca de 1.450 presos confinados em um espaço projetado para 160, no Anexo de Detenção Provisória de Araraquara. Mas disse que não serão transferidos do local e responsabilizou os próprios detentos pelas condições em que se encontram.
"Esse drama humano não foi causado por nós, mas pelos próprios presos. Temos que preservar a segurança da sociedade mantendo os presos detidos num presídio totalmente destruído por eles mesmos."
Ele disse ainda que a reforma da penitenciária, destruída durante rebelião em 16 de junho, começará na segunda-feira.
Ontem, a Folha mostrou a situação caótica do presídio, onde os presos estão isolados, a comida é jogada do teto, e, para sair, os detentos liberados pela Justiça têm de ser içados. Os agentes penitenciários deixaram o local desde 16 de junho quando, após uma rebelião, a porta do local foi lacrada.
Á noite, a Secretaria da Administração Penitenciária informou que hoje serão retirados do local 107 presos que "alegaram problemas de saúde" para serem examinados.
Informou ainda que os presos serão redistribuídos para mais um pátio, onde cabem 160 presos, que estava interditado após a localização de um túnel.
A demora de mais de 20 dias para iniciar a reforma, justificou Lembo, deve-se a questões burocráticas, como o processo de licitações, e reflexo dos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital), ocorridos um mês antes do motim na prisão de Araraquara.
"As rebeliões em maio último geraram uma incapacidade da dinâmica da restauração dos presídios", disse ontem, após evento com usineiros. Na entrevista, ele culpou quatro vezes os presos pela situação. Durante as obras de reforma na penitenciária, no entanto, os cerca de 1.450 presos devem ficar confinados no anexo, um espaço originalmente destinado para 160 pessoas. Ele descartou a possibilidade de transferência dos detentos porque não há lugar em outros presídios. A falta de espaço, ainda segundo Lembo, deve-se ao fato de o governo cumprir todos os mandados de prisão. Dados de maio já apontavam um déficit de 28.801 vagas no sistema prisional.
Rendidos, detentos foram baleados à queima-roupa, diz Hosmany Ramos
Presos rendidos "naquela posição do "Carandiru'", desarmados e recebendo tiros à queima-roupa. Esse foi o modo como policiais agiram para conter um tumulto ontem no Anexo de Detenção Provisória de Araraquara, segundo o relato do ex-cirurgião plástico Hosmany Ramos, condenado em 1981 por homicídio, roubo, tráfico e contrabando e preso no local. Leia abaixo trechos de sua entrevista, concedida à BandNews FM ontem, por telefone celular.
"O Gate [unidade da polícia paulista] rendeu os presos, que ficaram naquela posição do filme do [Hector] Babenco, o "Carandiru". Tudo encaixado um no outro, quietinho. O Gate entendeu que a situação estava dominada e entregou os presos para o choque de Araraquara. Então, não sei por que razão, o choque começou a atirar nos presos à queima-roupa, com calibre 12, junto com pessoas da direção do presídio.
Tudo rendido, desarmado, grudado um no outro, seres humanos, serem baleados.
O tenente da guarda tomou um susto ao ver o enorme número de gente sangrando e deu um grito: "Tem um médico aí com vocês?". Fiquei com medo, aquele tiroteio danado, pensei: "O quê? Esse cara vai dar um tiro no meu peito". Ele gritou: "Levanta aí, Hosmany, nós sabemos que você é médico".
Levantei, vi o enorme número de presos feridos, levei para um canto e pedi material de curativo. Aqueles com ferimento de bala muito grave eles levaram para o hospital. Depois os trouxeram com um serviço meia-boca. Um deles voltou até com a bala dentro da cabeça, e tive que fazer uma cirurgia para tirar a bala, eu próprio, aqui."
Presos são em geral jovens, pobres e analfabetos, denuncia Padre
Fonte: http://www.noticiasdoplanalto.net/index.php?option=com_content&task=view&id=1401&Itemid=43 / Áudio
Como integrante da Pastoral Carcerária de São Paulo, o Padre Valdir João já viu coisas inacreditáveis dentro dos presídios. Altos índices de analfabetismo, superlotação, abandono e condições degradantes de saúde. Há mais de 30 anos, a entidade visita os presídios de todo Brasil e oferece assistência aos detentos, ex-detentos e seus familiares. Segundo o religioso, que faz parte da coordenação da Pastoral, a maioria dos presos nunca teve uma profissão. O religioso afirma que cerca de 40% deles não sabem ler ou escrever. Ouça agora a entrevista que o Padre Valdir João concedeu à Agência Notícias do Planalto.
Agência Notícias do Planalto: Quais são os principais problemas que a Pastoral Carcerária diagnostica dentro dos presídios brasileiros?
Padre Valdir João: O grande desafio é a superlotação. O ano de 2005 terminou com 361 mil pessoas presas no país. Também são desafios a falta de trabalho, a questão de saúde e a jurídica. Quem é responsável pelo preso é o juiz. Quem prende e quem solta é o juiz. Mas temos uma grande falha no país que é dos órgãos responsáveis que não atuam dentro dos presídios, como os juízes, os integrantes do Ministério Público e o Poder Legislativo. Os parlamentares, por exemplo, têm que fazer leis para melhor arregimentar o sistema prisional. Há ainda grande falha dos advogados. Em alguns lugares até que a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] atua, mas em grande parte do país esses advogados não estão atuando. A Defensoria Pública foi criada este ano em São Paulo, mas ainda com grande limitação. São apenas 84 procuradores que optaram pela Defensoria, mas existem 400 vagas. Então, são vários problemas. É um conjunto de falhas.
ANP: Quais são os principais problemas sociais que contribuem para o inchaço das cadeias?
PVJ : Nossa população tem algumas características bem definidas. É em sua maioria formada por jovens entre 19 e 25 anos de idade. A grande maioria [dos presos] está nessa faixa etária. Eu sempre faço questão em cada cela que eu visito de perguntar quem tem segundo grau completo [equivalente ao atual Ensino Fundamental]. Percebo que o analfabetismo é altíssimo nos presídios. Nós não temos nenhuma estatística feita no país sobre isso, mas na visita que fiz agora [a um presídio em Rondônia], 40% em média são analfabetos. Num local com 62 pessoas presas, você encontra duas com segundo grau completo. O resto até tem estudo, mas é o Básico e o Fundamental incompleto. É uma classe analfabeta, pobre, miserável, que não teve nem apoio e nem espaço para estudar.
ANP: Padre Valdir João, quem são e como poderíamos definir melhor o perfil dos presos de hoje no Brasil?
PVJ: A maioria deles não tem profissão, muitos trabalhavam na lavoura, ou tinham subemprego nas metrópoles, como aqui em São Paulo. Os empregos chamados “bicos”. A gente sempre pergunta [quando fazemos visitas nos presídios] quantos presos tinham a carteira de trabalho assinada antes de ir preso. Isso é a minoria. É uma base de 30% deles apenas, e olhe lá.
ANP: E por que o senhor acha que os governos não conseguem combater a criminalidade?
PVJ: As causas que levam as pessoas para os presídios são, primeiramente, a questão educacional. As pessoas não têm espaço para estudar, não têm trabalho, casa – porque a maioria vive em barracos, casa alugada ou temporário. A maioria veio do campo, trabalhava na roça e perderam espaço para as fazendas. E aqui na capital, em São Paulo, você encontra muita gente que veio de outras regiões do país para procurar emprego.
ANP: Segundo o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), a população carcerária tende a crescer e deve ser de meio milhão de pessoas em dois ou três anos. Nesse ritmo, o instituto avalia que o governo precisaria construir um novo presídio a cada 15 dias para abrigar todo mundo. Na opinião da Pastoral Carcerária, qual quadro social que muito provavelmente vamos viver?
PVJ: Nós estávamos com um déficit de vagas antes das rebeliões [em maio deste ano] que seria preciso construir 45 presídios novos só no estado de São Paulo. Mas com essas rebeliões, os presos estão só em um pavilhão. A sociedade não está discutindo que a pessoa apenada volte ao convívio social. O preso é jogado ao abandono total, tem que sobreviver [quando sai da cadeia] tem que sobreviver, volta ao crime e volta a gastar um valor altíssimo do estado, da população. Não está sendo pensada realmente política preventiva, de combate ao crime. Estamos só combatendo o resultado, tentando apagar o fogo. Mas não impede o incêndio.
Vocês acabaram de ouvir o Padre Valdir João, da coordenação da Pastoral Carcerária de São Paulo.
De São Paulo, da Agência Notícias do Planalto, Clara Meireles.
“Política do encarceramento” faliu sistema prisional de SP
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11767
Drama dos detentos de Araraquara (SP), que continuam submetidos a condições desumanas de alojamento, é um dos reflexos da política adotada em São Paulo há muitos anos tanto pelo Executivo como pelo Judiciário.
Bia Barbosa – Carta Maior
SÃO PAULO – Terça-feira (18), representantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical, Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), Central Geral dos Trabalhadores (CGT), Central Autônoma dos Trabalhadores (CAT) e da Social Democracia Sindical (SDS) se reuniram com o governador Cláudio Lembo e apresentaram ao Estado propostas para a crise da segurança pública em São Paulo. Entre os eixos de ação propostos pelas centrais sindicais estão a adoção de políticas públicas que ofereçam à juventude qualificação profissional, saúde, educação e lazer; a melhoria das condições de trabalho e salário dos funcionários do sistema prisional e das polícias; e a criação de mutirões nos presídios para fazer um raio-x da verdadeira situação da população carcerária de São Paulo. O governador Lembo teria demonstrado “simpatia” pelas propostas, mas ressaltado que os problemas da segurança pública são complexos e difíceis de serem resolvidos prontamente.
Nenhuma surpresa neste sentido. Com uma população carcerária que cresceu de forma linear na última década, saltando de 56 mil em 1994 para 143 mil em 2006, somando os detentos sob responsabilidade da Secretaria de Administração Penitenciária e da Secretaria de Segurança Pública, São Paulo enfrenta uma das situações mais complexas do país. Os problemas vão da permanente superlotação das unidades a deficiências gritantes no atendimento médico e psicológico dos presos, passando pela ausência de oferta de trabalho e educação dentro dos presídios e por maus-tratos e torturas.
No dia 10 de maio deste ano, durante uma visita à Cadeia Pública de Jundiaí, na Grande São Paulo – onde dez presos morreram durante uma rebelião em março –, a Acat (Associação dos Cristãos para a Abolição da Tortura) ouviu uma série de denúncias dos detentos. De acordo com o documento divulgado pela entidade, depois da rebelião quase todos os presos foram espancados. Com três deles, a reação foi mais dura ainda: “Alan foi baleado na boca e teve as juntas dos braços e pernas quebradas. Edi Carlos teve suas coxas e nádegas comidas por cachorros. Anderson, com várias marcas de espancamento com barra de ferro e mordidas de cachorros. Os familiares destas vítimas foram ameaçados caso denunciassem as condições dos cadáveres”.
No Centro de Detenção Provisória do Belém, na capital paulista, a situação de degradação não é diferente. “Meu irmão ficou sete meses preso esperando para ser julgado. Lá dentro, teve problema de coceira e sarna. Eles tomavam muito banho, mas como dormia todo mundo junto, 32 onde só cabiam 12, não tinha jeito. O presídio fica do lado do rio Tietê, então tinha muito rato. À noite, eles fechavam os buracos no chão [onde são feitas as necessidades fisiológicas] para os ratos não subirem. O mal cheiro era muito grande”, contou A.S. à equipe da Carta Maior.
De acordo com o relatório sobre o sistema prisional brasileiro da Comissão de Minorias e Direitos Humanos da Câmara Federal, o princípio da dignidade humana é condição indispensável para que o sistema prisional exerça sua função. “O que se pode esperar de um ser humano – que não perde essa condição a despeito de ter cometido crime, amontoado em masmorras fétidas, submetido à tortura, a toda a sorte de humilhações e maus-tratos, transformado em refém do crime organizado? Que exemplo a sociedade e o Estado estamos dando aos presos se não respeitamos seus direitos fundamentais e lhe negamos acesso à justiça?”, questiona o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, presidente da Comissão.
Para Greenhalgh, é preciso desmistificar as falsas soluções no sentido de recrudescer as normas de cumprimento de penas. Ele acredita que agravar penas e reduzir idade penal, impor castigos cruéis, aplicar de forma indiscriminada a Lei dos Crimes Hediondos – igualando os delinqüentes de crime único aos de alta periculosidade – são medidas que têm sido empregadas sem sucesso. “Pelo contrário, o Estado de São Paulo, que vem se orientando nos últimos anos por essa política regressiva, é o Estado com a mais explosiva situação prisional de todo o país, tanto nas unidades para adultos quanto nas de internação de adolescentes da Febem, reprovadas por diferentes instituições internacionais de direitos humanos”, avalia.
Penas alternativas O drama dos detentos de Araraquara, no interior do Estado, que continuam submetidos a condições desumanas de alojamento depois que todo o presídio foi destruído durante uma rebelião, é um dos reflexos da política adotada em São Paulo há muitos anos tanto pelo Executivo como pelo Judiciário. Na origem da rebelião que acabou com a unidade no mês passado está o problema da superlotação do centro, fruto de uma linha política de construção desenfreada de presídios e de um conservadorismo do Judiciário que não utiliza, como poderia – e deveria –, as medidas alternativas de punição a criminosos. Em Araraquara, 400 pedidos de benefícios estão parados na Vara de Execução Penal. Segundo a Ordem dos Advogados do Brasil no município, cerca de 50 livramentos condicionais poderiam ser concedidos, e pelo menos 100 pessoas poderiam estar fora desta situação.
“O que se fez em São Paulo é uma bomba relógio. Você concentra recursos na construção de unidades prisionais, multiplica o número de presos pelo estado e submete-os a uma política que não vai levar à recuperação. Ali, todos estão reunidos num mesmo espaço, presos de alta periculosidades e criminosos primários. Isso é um ambiente “criminógeno” em si”, acredita José Marcelo Zacchi, coordenador institucional do Fórum Nacional de Segurança Pública. “Parte dessa população, se tivesse assistência judiciária, poderia fazer jus a benefícios ou estar liberada. Além disso, é preciso dedicar parte dos recursos a uma rede que possa cuidar das penas alternativas e absorver essas pessoas. As duas coisas têm que ser feitas em equilíbrio”, acredita.
A ênfase desmensurada na construção de presídios de regime fechado, sem investimentos no semi-aberto, em penas alternativas e em oficinas de trabalho para absorver os egressos do sistema prisional também é criticada pelo deputado estadual Renato Simões, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos, relator da CPI do narcotráfico e membro da Comissão de Segurança Pública da Assembléia Legislativa de São Paulo.
“O governo se preocupou muito com a porta de entrada e pouco com a porta de saída dos presídios. Com isso, a progressão de regime e a ressocialização dos presos não foram asseguradas. Assim, o número de presos que entram supera muito o que sai, e a qualidade dos presos que saem não foi alterada por uma política de ressocialização”, afirma o deputado. “O Estado falha, deste jeito, ao negar direitos fundamentais aos presos, que depois são assegurados como privilégios apenas ao membros do PCC. Quem é inimigo do PCC dentro dos presídios morre, mas quem é amigo tem advogado, acesso aos poucos postos de trabalho, a celas menos lotadas. Fica inviável, então, administrar presídios quando os direitos fundamentais são garantidos a poucos e sob a chancela de grupos criminosos. O que o Estado precisa deixar claro para o preso é que ele tem opção no Estado, e hoje ele não tem. Só na facção”, afirma Renato Simões.
Organizações da sociedade civil criticam ainda uma mudança na política estadual ocorrida no final da década de 90, quando o governo teria passado a fazer acordos com lideranças das facções criminosas – o que é negado pelo Executivo – para que elas mesmas se responsabilizassem pela disciplina dentro das unidades.
“Em vez de garantir direitos coletivos, é muito mais fácil para o Estado tratar alguns líderes com regalias, que muitas vezes até são direitos, mas que dentro de um sistema de tanta carência se tornam regalias. Assim, estabelecem um sistema de auto-gestão, onde os presos se auto-governam, mantêm a disciplina dos demais. Assim, o governo acabou fortalecendo a liderança dessas facções criminosas, acabou estruturando cada vez o crime organizado nos presídios, exatamente para manter essa política de aparência. Uma aparente calmaria mantida através de acordos entre os governos e as lideranças”, diz Ariel de Castro Alves, coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos.
“Antes de 2000, quem fazia a interlocução entre governo e presos, em prol de direitos coletivos e do cumprimento da lei de execuções penais, eram as entidades de direitos humanos, principalmente a Pastoral Carcerária. Depois de 2000, o governo começou a fazer reuniões e discussões diretamente com as lideranças sistema prisional, e assim as reconheceu e fortaleceu, estabelecendo também acordos para que garantissem a disciplina e a auto-gestão dos presídios”, explica Alves.
Estado mínimo de segurança
Emir Sader / http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11764
Antes de tudo que o governo do Estado de São Paulo perdeu completamente o controle da situação de segurança pública. Os presídios se encontram sob o poder das gangues organizadas. Os líderes dessas gangues dirigem as ações diretamente de dentro dos presídios, contando com sistema de comunicações eficiente. Alvos os mais diferentes são atacados sem que nenhum tipo de proteção das autoridades possa dar conta da sua defesa.
Um relato assustador revela que os endividados com o tráfico têm suas condenações à morte perdoadas em troca do assassinato de algum agente penitenciário. Mas, como acontece nesse universo mafioso, ainda assim seus nomes podem ser entregues pelos líderes das gangues à polícia, como responsáveis pelos assassinatos.
O maior problema é que essa perda de controle é resultado justamente de uma política que busca reunir, por um lado o “choque de gestão” - de que tanto se orgulha o atual candidato à presidência, Geraldo Alckmin - e, por outro, do exibicionismo de truculência do seu secretário de segurança pública. O primeiro elemento costuma ter como uma de suas principais conseqüências, a redução de recursos para as políticas sociais, mas também para as de segurança pública. Por outro, esse exibicionismo não costuma ser acompanhado de todas as formas de ação preventiva – tanto de comunicação, como de policiamento e de todas as formas de investigação.
Os “choques de gestão” exibem realizações estatísticas, mas que não se correspondem com a realidade concreta dos problemas que os números pretendem demonstrar a resolução. É o caso dos dados sobre suposta diminuição quantitativa da criminalidade em São Paulo, que o ex-governador chegou a comparar a “índices europeus”. A incompatibilidade das estatísticas com a realidade concreta desmoraliza aquelas, porque é esta que se impõe como a dura realidade da vida.
Outro dos aspectos do simples endurecimento da repressão, que levou a que a população carcerária em São Paulo superasse as 150 mil pessoas, é que ela gera superlotação nos presídios, com a correspondente acentuação da desumanização que os pátios lotados de presos – como a imagem dantesca de Araraquara – é uma das imagens mais expressivas. As prisões não possuem nenhuma possibilidade de assumir seu papel de recuperação, restando como depósitos, que misturam réus primários com outros com trajetória consolidada no crime, que dominam cruelmente o clima interno dos presídios.
O monopólio da violência pelo Estado está quebrado há tempos em lugares como o Rio de Janeiro e São Paulo. A disseminação das gangues atende a uma grande quantidade de fatores, mas certamente a descriminalização das drogas leves seria um golpe duro a uma prática que demanda a organização de grupos clandestino para o tráfico, assim como a corrupção de setores da policia, que igualmente vivem da ilegalidade.
As reações se dão em torno de situações de crise, como as que têm sucedido em São Paulo com certa regularidade, evidenciam o colapso e o fracasso das políticas de segurança pública nesse estado. Ainda assim o principal responsável por essa situação assume as teses do Estado mínimo. Esse é o Estado mínimo – um Estado que não controla a ordem pública, que não responde pelo que acontece dentro dos presídios, que não garante a integridade física da população, que permite que se disseminem sentimentos generalizados de insegurança e de pânico.
A retração do Estado se dá pelo favorecimento das relações mercantis e, como parte delas, os grupos de segurança privada, de gangues de marginais, de esquadrões de extermínio. Ao invés de fortalecer as políticas públicas, de atacar a cultura da violência que os governos que pregam com o exibicionismo da truculência, propõem-se a retração do Estado e, com ele, da possibilidade de políticas públicas. Menos Estado significa menos segurança, menos proteção da cidadania, menos espaços para reforma do Judiciário e do sistema penal e carcerário. Quem prega o Estado mínimo, tem que se ater às suas conseqüências, não pode elevar mais demandas a um Estado dilapidado em sua capacidade de ação pelas políticas liberais.
Polícia matou 84% a mais e prendeu 2% a menos
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u124612.shtml
02/08/2006 - 09h12 - ANDRÉ CARAMANTE e KLEBER TOMAZ, da Folha de S.Paulo
A polícia de São Paulo matou no primeiro semestre --período marcado pelos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital)-- 84,27% pessoas a mais do que nos seis primeiros meses do ano passado.
Enquanto houve aumento de 84,27% na letalidade policial, o número de prisões efetuadas pela polícia sofreu redução de 2,6%. De 45.454, nos seis meses iniciais de 2005, para 44.270, no mesmo período deste ano.
De janeiro a junho de 2006, segundo dados oficiais divulgados ontem pelo governo Cláudio Lembo (PFL), 328 suspeitos foram mortos por policiais civis e militares no Estado; no mesmo período do ano passado, 178 mortes foram contabilizadas. Durante todo o ano de 2005, foram cometidas 329 mortes atribuídas a policiais. Dessas, 278 ocorridas em confrontos com a PM, segundo o comando da corporação.
Por lei, o governo estadual é obrigado a apresentar publicamente os índices de criminalidade a cada três meses.
Ontem, a Secretaria da Segurança Pública divulgou os números referentes ao segundo trimestre, que incluem o período de 12 a 19 de maio, quando houve a primeira onda de ataques do PCC. O aumento de mortes entre um trimestre e outro é considerável. Foram 212 (abril, maio e junho) contra 116 (janeiro, fevereiro e março).
Na época dos ataques, o governo afirmou que, das pessoas mortas por policiais, 92 tinham ligação com os atentados da facção criminosa PCC.
Considerando-se as 328 mortes cometidas por policiais militares e civis em São Paulo, até o dia 30 de junho, a média diária é de 1,82. No primeiro semestre de 2005, esse mesmo índice de letalidade na ação de PMs e civis foi de 0,98 caso.
Entre as duas polícias, a Militar foi a que mais matou -como ocorre desde julho de 1995, quando o governo paulista começou a tornar público os números da violência no Estado.
Somente no primeiro semestre deste ano, PMs mataram 298 pessoas em São Paulo, contra 158 no mesmo período de 2005. O aumento foi de 88,61%. Os policiais civis também mataram mais agora (30 pessoas) do que nos primeiros seis meses de 2005 (20 mortes).
"A polícia não matou inocentes nos confrontos com o PCC", afirmou ontem o coronel Elizeu Eclair Teixeira Borges, comandante-geral da PM. "O lado negativo é que morreram mais criminosos. O aumento é normal, mas o infrator se expôs mais", afirmou o coronel.
O número total de apreensões de armas também sofreu uma queda: no primeiro semestre de 2005, 16.238 armas foram encaminhadas para os depósitos da Polícia Civil; neste ano, 13.437, ou seja, o período foi marcado por uma queda de 17,25% nas apreensões.
Policiais mortos
Ainda por conta da guerra travada entre criminosos do PCC e o Estado, o número de policiais civis e militares mortos nos primeiros seis meses deste ano também sofreu um aumento considerável em relação ao ano passado: 90,91%.
No primeiro semestre de 2005, 11 policiais foram mortos; no mesmo período de 2006, 21. Outros crimes, como o homicídio doloso (intencional), o seqüestro e o roubo a banco também aumentaram em todo o Estado.
Os PMs mortos em 2006 foram 19; em 2005, nove, ou seja, 111,11% de aumento. Em 2005, entre janeiro e junho, dois policiais civis foram mortos em São Paulo; neste ano, o índice voltou a se repetir, apesar do PCC.
Maior letalidade
O ano de maior letalidade policial foi 2003, quando 915 pessoas (868 pela PM e 47 pela Polícia Civil) foram mortas. Somente no primeiro semestre daquele ano, 487 pessoas foram mortas durante ações nas quais policiais estavam envolvidos. A média diária foi de 2,66.
No período compreendido entre 1º de julho de 1995 até 30 de junho deste ano, policiais militares e civis mataram 5.473 pessoas em todo o Estado de São Paulo, ainda segundo os dados oficiais da Secretaria da Segurança Pública. Desde julho de 1995 até hoje, 501 policiais civis ou militares foram mortos no Estado.
Penitenciária de Mirandópolis funciona em condições subumanas
Entidades de direitos humanos e familiares de presos lançam dossiê onde retratam as péssimas condições em que se encontram 1.250 detentos. Sem luz, água, roupas e tratamento médico, eles ocupam uma área destinada a 120 pessoas.
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11847&editoria_id=5
Bia Barbosa - Carta Maior
SÃO PAULO – “Ficamos sabendo da situação no dia 16 de junho. Juntamos dinheiro entre nós e fomos para lá. Não conseguimos falar com o diretor, não conseguimos nada. Ficamos por lá 8 dias. Na semana seguinte fomos para Presidente Venceslau. O coordenador das penitenciárias da região Oeste disse que não teria vaga para transferências porque as outras unidades estavam destruídas. Fomos então pra Brasília. Não conseguimos falar com o Ministro da Justiça, mas o Paulo Vanucchi, secretário de Direitos Humanos, nos recebeu. Só disse que não podia fazer muita coisa porque o governo de São Paulo não quer aceitar a ajuda do governo federal”.
A saga de Lara de Cássia Mendes, auxiliar administrativa, mãe de dois filhos, e de dezenas de outras mulheres, é para garantir condições mínimas de encarceramento para seus maridos, detentos da Penitenciária Nestor Canoa, de Mirandópolis, no interior de São Paulo. Nesta segunda-feira (31), entidades de defesa dos direitos humanos lançaram um dossiê denunciando as condições subumanas a que os presos estão submetidos. Desde a segunda quinzena de junho, por conta da última rebelião que destruiu quase toda a unidade, cerca de 1.250 homens estão confinados num espaço reservado inicialmente a 120 pessoas.
Sem luz e água, muitos têm dormido ao relento, e são poucos os cobertores disponíveis. Tuberculosos, portadores e HIV e diabéticos não estão recebendo a medicação regular. As mulheres dos presos denunciaram ainda que vários homens estariam feridos a bala desde a entrada do Choque na unidade, no final de junho passado.
“Todos apanharam muito quando o Choque entrou. Quarenta e cinco presos, que estariam machucados, foram levados. Mas nós temos uma lista de 70 feridos”, conta Lara. Seu marido está preso há 13 anos por assalto. Antes, estava detido no presídio de Martinópolis, também no interior do Estado. Para ela, esta é a pior situação pela qual já passaram. No último motim, seu esposo teve a clavícula fraturada. “Nem na mega rebelião foi assim”. As visitas estão interditadas desde o início de junho, quando ocorreu a rebelião. A previsão é a de que recomecem de 3 a 5 meses depois do início das obras. O envio e recebimento de cartas também está praticamente paralisado.
A partir dos acontecimentos no presídio de Araraquara - que chocaram o país no último mês -, a Associação Cristã para a Abolição da Tortura (ACAT) começou a receber denúncias das esposas dos presos de Mirandópolis. “Elas contavam da tortura, da ação da Rota dentro dos presídios, que coisas semelhantes estavam acontecendo”, relata Eliane Grofe, membro da entidade. Segundo as esposas, pedaços de vidro têm sido misturados na alimentação, e a comida tem cheiro de urina.
"Nas poucas cartas que recebemos, eles dizem que estão bem, que não precisamos nos preocupar. Mas sabem que as cartas são lidas pelos agentes antes de serem enviadas. Sabemos, por presos que tiveram liberdade, que tem muita gente passando mal lá dentro, vomitando sangue", conta uma das mulheres de Mirandópolis, Valéria Magiopani.
"Eles estão sem água, sem comida, sem PS [assistência médica]. Queremos o mínimo de dignidade. Nossos maridos já estão pagando pelo que fizeram com a sua liberdade. Mas o que estão fazendo com eles é crime também. E quem vai pagar por isso?", se indigna Juliana de Almeida.
Para a ACAT, é preciso tomar providências urgentes para que os presos sejam transferidos de Mirandópolis. "Essas pessoas têm que ter um lugar digno para cumprir suas sentenças”, acredita Eliane.
As entidades encaminharam a denúncia contra o governo de São Paulo à Organização Mundial de Combate à Tortura, à Associação de Prevenção à Tortura e ao Fundo Voluntário das Nações Unidas em Apoio às Vítimas de Tortura. A Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, que interveio no caso de Araraquara, também será acionada. Em parceria com a organização não governamental Justiça Global, a denúncia será encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos).
No próximo dia 7 de agosto, a Comissão Independente – que vêm cuidando dos casos de morte ocorridos durante a semana de 12 a 19 de maio, quando a polícia reagiu com força aos ataques do PCC – se reunirá com o Procurador Geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo Pinho, e também pedirá providências urgentes do Ministério Público à situação da Penitenciária de Mirandópolis.
"Temos ainda que exigir do juiz da comarca, responsável pelas execuções penais, que visite o presídio uma vez por mês, pelo menos, para verificar se as condições são adequadas. Isso está previsto na lei e é conveniente que o juiz o faça, para que não peque por omissão em relação ao que está acontecendo", analisa Lúcio França, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil).
Na avaliação de Ariel de Castro Alves, coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos, a Secretaria de Administração Penitenciária do governo de São Paulo e os funcionários do presídio de Mirandópolis também podem responder criminalmente por tortura. Para ele, colocar 1.200 pessoas onde cabem 120, sem água e nessas condições de alimentação, já configuraria a prática de tortura.
"As pessoas que estão no sistema prisional hoje são vítimas de barbaridades impetradas pelo próprio governo. Tratar presos desta forma só gera mais revolta e não resolve o problema", conclui Alves.
Luta feminina “Meu marido está preso há 32 anos, 9 meses e 4 dias. Já passamos por várias rebeliões. Pra nós, mulheres, é difícil segurar a barra. É humilhante não ter dinheiro para pagar a passagem de ônibus na rodoviária. É ultrajante ficar sem roupa, ter que abrir as pernas e agachar para que outras mulheres nos revistem na entrada da cadeia. Na semana da visita, a gente já começa a preparar o jumbo [kit com alimentos e produtos de limpeza que as famílias levam para os presos] para o nosso companheiro. Não dormimos direito por causa da expectativa. È algo que bate profundo. Hoje eles estão sem médico, sem dentista. Meu marido perdeu os óculos na rebelião e está praticamente cego. Teve uma crise de hipertensão e não teve acesso a remédio, nem comigo comprando. Por sermos mulheres, sentimos mais. Cumprimos uma pena maior aqui fora”.
O desabafo da esposa de um dos detentos de Mirandópolis não retrata uma situação particular. São as mulheres e mães dos presos as que mais se entregam na luta por melhores condições de encarceramento no Estado de São Paulo. E as que mais sofrem as conseqüências dessa entrega.
Há cerca de um mês, Dircilene Batista de Lima foi presa, autuada em flagrante com 150 g de maconha em sua bolsa – droga que ela desconhecia, afirma. Dircilene é irmã de um dos presos da Cadeia Pública de Jundiaí, onde três detentos morreram este ano depois de terem sido baleados e jogados aos cachorros durante uma rebelião. Foi ela que levou os familiares dos presos para reconhecerem os corpos em Jundiaí. Também foi até Brasília, pedir a demissão do diretor da penitenciária, acusado de promover espancamentos periódicos na unidade. Por conta do suposto flagrante armado, ela ficou detida por 15 dias na Cadeia Feminina de Itupeva, no interior do Estado. Agora, está respondendo ao processo em liberdade.
Nesta segunda-feira, Dircilene participou do lançamento do dossiê sobre Mirandópolis e deixou uma mensagem para as mulheres de lá: “Tenham força até o último momento. Nós somos as pernas, braços e olhos deles aqui fora. Chega de tortura e covardia no sistema carcerário”.
Veja a íntegra do comunicado atribuído ao PCC
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u124974.shtml
Uma gravação feita por um suposto integrante do PCC (Primeiro Comando da Capital) foi exibida no começo da madrugada deste domingo, na Rede Globo. A exibição foi uma exigência feita pelos seqüestradores do repórter Guilherme de Azevedo Portanova, desaparecido desde sábado (14).
O DVD com a filmagem chegou à emissora por meio do auxiliar técnico seqüestrado ao lado do repórter e libertado na noite de sábado.
No vídeo, um criminoso faz críticas ao sistema penitenciário. Ele pede um mutirão para revisão de penas, melhores condições carcerárias, e se posiciona contra o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado).
Leia a transcrição da filmagem:
"Como integrante do Primeiro Comando da Capital, o PCC, venho pelo único meio encontrado por nós para transmitir um comunicado para a sociedade e os governantes.
A introdução do Regime Disciplinar Diferenciado [RDD] pela Lei 10.792/2003, no interior da fase de execução penal, inverte a lógica da execução penal. E coerente com a perspectiva de eliminação e inabilitação dos setores sociais redundantes, leia-se 'a clientela do sistema penal', a nova punição disciplinar inaugura novos métodos de custódia e controle da massa carcerária, conferindo à pena de prisão o nítido caráter de castigo cruel.
O Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado vigente na consciência mundial desde o ilusionismo [sic] e pedra angular do sistema penitenciário, a LEP.
Já em seu primeiro artigo, traça como objetivo do cumprimento da pena a reintegração social do condenado, a qual é indissociável da efetivação da sanção penal. Portanto, qualquer modalidade de cumprimento de pena em que não haja constância dos dois objetivos legais --castigo e a reintegração social--, com observância apenas do primeiro, mostra-se ilegal, em contradição à Constituição Federal.
Queremos um sistema carcerário com condições humanas, não um sistema falido, desumano, no qual sofremos inúmeras humilhações e espancamentos.
Não estamos pedindo nada mais do que está dentro da lei. Se nossos governantes, juízes, desembargadores, senadores, deputados e ministros trabalham em cima da lei, que se faça justiça em cima da injustiça que é o sistema carcerário, sem assistência médica, sem assistência jurídica, sem trabalho, sem escola, enfim, sem nada.
Pedimos aos representantes da lei que se faça um mutirão judicial, pois existem muitos sentenciados com situação processual favorável, dentro do princípio da dignidade humana.
O sistema penal brasileiro é, na verdade, um verdadeiro depósito humano, onde lá se jogam seres humanos como se fossem animais.
O Regime Disciplinar Diferenciado é inconstitucional. O Estado Democrático de Direito tem a obrigação e o dever de dar o mínimo de condições de sobrevivência para os sentenciados. Queremos que a lei seja cumprida na sua totalidade. Não queremos obter nenhuma vantagem.
Apenas não queremos e não podemos sermos [sic] massacrados e oprimidos. Queremos que, um, as providência sejam tomadas, pois não vamos aceitar e não ficaremos de braços cruzados pelo que está acontecendo no sistema carcerário.
Deixamos bem claro que nossa luta é contra os governantes e os policiais. E que não mexam com nossas famílias que não mexeremos com as de vocês. A luta é nós e vocês."
"Periferia é a maior vítima dos ataques criminosos"
Folha de São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 2006
Escritor e rapper, Ferréz afirma que os moradores das áreas pobres de São Paulo acabam sendo vistos pela polícia como bandidos ou aliados do crime
UIRÁ MACHADO - COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2108200624.htm
É um erro associar o PCC (Primeiro Comando da Capital) à periferia, que é a maior vítima dos ataques criminosos por sofrer tanto as consequências -como a retirada de ônibus das linhas devido aos incêndios- quanto a estigmatização -a ação policial em busca dos autores dos atentados se concentra nas áreas pobres. É com a experiência de quem sempre viveu na periferia, mais especificamente no Capão Redondo -bairro da zona sul de São Paulo reiteradamente associado à violência-, que Ferréz, 31, escritor e rapper, critica essa visão de que morador de áreas pobres ou é criminoso ou apóia e se beneficia do crime. "Em nenhum momento eu ouvi alguém dizendo que foi bom os policiais serem mortos." O PCC, diz ele, fala em nome de seus próprios interesses, não representa o povo, que teme as ondas de ataques. Ele acredita que, se não houver uma revisão do sistema carcerário, achando um meio-termo entre a "linha dura" e a "linha mole", a situação de São Paulo, que já viveu três ondas de ataques, só vai piorar. De acordo com Ferréz, o "clima é de preparação para o que vai acontecer", mas ele não sabe explicar o que está por vir. Sabe dizer que é preciso olhar para a periferia, pois, afirma ele, "se deixarem as pessoas nesse abandono, o futuro é "Mad Max'". A referência ao filme que apresenta um futuro caótico, no qual a violência é banalizada e os bandidos reinam, é, para Ferréz, metáfora de um futuro possível, mas nada desejável e ainda distante da vida da periferia de São Paulo. Ferréz explica que, quando reclama mudanças no sistema prisional, não está pedindo ""refresco" pra ninguém, não. Mas tá claro na Constituição que o sistema não é punitivo, é pra reabilitar o preso. E o que acontece é que o cara é punido até o osso". Com uma metáfora, resume: "Esse terror é um reflexo do terror que todo mundo já vive. Se você plantar armas, vai colher corpos no chão. Se plantar livros, vai colher bibliotecas".
FOLHA - Considerando a relação com os policiais e a rotina da periferia, o que muda após os ataques do PCC? FERRÉZ - Muda o clima: fica uma tensão, a polícia fica enervada. Como não se sabe quem é do crime e quem não é, acaba achando que na periferia só tem criminoso. Cria um estigma. A mídia também tem um papel muito cruel nessa história. Ela traz o pânico pro povo daqui, sendo que, muitas vezes, o direcionamento dos ataques não é pra periferia. Parece que é de propósito, pra trazer a guerra mais pra perto da gente, pra fazer as pessoas daqui também terem ódio da facção criminosa.
FOLHA - Já foram três séries de ataques. Qual a diferença de uma pra outra? FERRÉZ - O revide da polícia depois do primeiro ataque foi o mais triste. A polícia veio pra periferia e pegava quem achava que era criminoso. Quem tinha um boletim de ocorrência, quem tava na rua, sem camiseta e de touca, virava suspeito. Aí o povo pega ódio da polícia, que muitas vezes só tá fazendo seu trabalho. E a polícia está desamparada, o Estado deixou a polícia abandonada. Fica uma guerra de "nóis contra nóis", porque o policial muitas vezes é da periferia, mora perto da favela. Uma vez, um amigo que estudou comigo e virou policial foi abordar a gente: fingiu que não conhecia. Uma semana depois, veio na minha casa pedir desculpas. Nessa guerra na periferia, sabe o que parece? Que somos peões num jogo de xadrez, sempre brigando, e a briga não chega nos cavalos, nos reis.
FOLHA - E quem são os cavalos, os reis? FERRÉZ - Os cavalos são os políticos; os reis são os donos desse país, as 300 famílias mais ricas. E a gente fica ali, se digladiando... No final, eu olho pra cara de um policial e vejo um moleque de 19, 20 anos, querendo um salário de R$ 800. Ele não deveria ser assassinado por causa disso. E nessa guerra todo mundo é vítima, mas a periferia que trabalha é a mais vítima de todas, porque ela fica encurralada. Não tem ônibus por causa do atentado, então não vai trabalhar. Mas, se acontece um incidente na favela, não chama a polícia, porque não confia. É o tempo inteiro assim, um medo constante. Ao mesmo tempo, a gente já tem uma visão de guerra. Há seis anos, em entrevista que eu e o Paulo Lins demos à Folha, a gente já falava: ou é pela arte, ou pelo terror. A arte não chegou.
FOLHA - E o terror é uma forma de expressão? FERRÉZ - Minha opção pela arte é clara, mas acho que esse terror é um reflexo do terror que todo mundo já vive. Se você plantar armas, vai colher corpos no chão. Se plantar livros, vai colher bibliotecas. Não acho normal ligar a TV, ver um monte de moleque de cueca passando por uma revista e ouvir que é "só o fim de uma rebelião da Febem". A sociedade aprendeu a achar normal. Mas até quando vai achar normal e virar as costas? Não tô falando que tem que dar "refresco" pra ninguém, não. Mas tá claro na Constituição que o sistema não é punitivo, é pra reabilitar o preso. E o que acontece é que o cara é punido até o osso. Precisa corrigir o sistema prisional. E só o que eu vejo é gente falando que precisa apertar ainda mais.
FOLHA - Mas "apertar mais" não poderia resolver? FERRÉZ - Acho que não. Se você pega um cara e mantém ele numa linha dura, o que você espera que ele vai ser quando sair da prisão? Não se trata ser humano dessa forma. O que separa um criminoso do não-criminoso é só o ato criminal. Se eu perco a cabeça e te dou um soco porque não gostei do que você disse, posso ir preso -e pronto: virei criminoso. Ou seja, não tem tanta diferença assim. Mas a sociedade repugna, trata de uma forma que demoniza. Acho que a solução tá longe do que estão propondo.
FOLHA - Se "apertar" não resolve, qual é a solução? FERRÉZ - Não sei. Não é partindo pra linha dura, mas também não é indo pra linha mole. Sem inteligência, só com polícia truculenta, a gente não vai chegar a um lugar melhor.
FOLHA - Os moradores da periferia gostam do PCC? FERRÉZ - Não. É um erro muito grande associar a facção criminosa à periferia. Em nenhum momento eu ouvi alguém dizendo que foi bom os policiais serem mortos. Tem um ou outro cara que é do crime que gosta, claro, mas esse não é o pensamento da periferia.
FOLHA - No vídeo que o PCC obrigou a Globo a divulgar, eles falaram em uma guerra entre "nós e vocês". No começo dessa entrevista, você falou numa guerra entre "nós e nós". Por que a diferença? FERRÉZ - Eu tô vendo pelo lado do povo. Como eu disse, o povo e a polícia estão na mesma parte da população. E o PCC fala em nome deles. Ficou bem claro que eles não falam em nome do povo brasileiro nem do povo da periferia. Precisa saber separar.
FOLHA - E o que você achou desse episódio que envolveu o seqüestro de um repórter? FERRÉZ - Nesse episódio, todo mundo tá passando a mão na cabeça da Globo, mas a Globo errou. Não deveria ter divulgado o vídeo.
FOLHA - Por quê? FERRÉZ - Porque abriu um precedente. É f..., porque parece que iam matar o cara. Salvou uma vida, mas colocou São Paulo em xeque. Se tiverem que dar outra mensagem...
FOLHA - Mas isso é algo que você sabe? FERRÉZ - Não. Mas tô sentindo um clima de preparação pro que vai acontecer. A gente não tá mexendo com gente burra, desinformada, excluída, com coitado. Estamos lidando com gente que sabe o que quer. Isso é uma seqüela que o Estado gerou. Dois meses antes dos atentados, escrevi um texto que falava que a gente ia ter que mudar a bandeira de São Paulo para "SPPCC" se a gente não se organizasse como uma sociedade que respeita o sistema carcerário. E aconteceu. Mas não é difícil prever se você está aqui dentro [na periferia]. Daqui, se você vive o dia-a-dia, você sente o clima com a população e percebe que isso não vai durar muito tempo. Essa é a nova São Paulo. Aprenda a viver nela ou saia fora. As pessoas falam de guerra no Líbano, no Iraque, e nós estamos nessa guerra faz tempo e ninguém tá olhando. Há alguns anos eu falava, não acreditavam, mas eu insisto: se não cuidarem das coisas como elas devem ser cuidadas, se deixarem as pessoas nesse abandono, o futuro é "Mad Max".
São Paulo não cumpre medidas da OEA para Araraquara
Em relatório enviado à Corte nesta segunda, organizações peticionárias afirmam que nenhuma das medidas urgentes determinadas foi cumprida pelo governo de São Paulo. Até as transferências de presos foram paralisadas há duas semanas.
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=12198
Bia Barbosa – Carta Maior
SÃO PAULO – No último dia 28 de julho, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou uma série de medidas urgentes visando a solucionar a grave crise na Penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira, em Araraquara, no interior de São Paulo, onde cerca de 1.400 detentos se encontravam em condições subumanas de encarceramento. Entre as medidas estabelecidas pelo presidente da Corte, Sergio García Ramírez, estavam a redução substancial da superpopulação da penitenciária, garantindo condições dignas de detenção; a separação das pessoas privadas de liberdade por categorias; o acesso a pessoal médico ao presídio e a reacomodação dos presos com doenças infecto-contagiosas, de forma a evitar o contágio de outros reclusos; a entrega de alimentos, vestimentas e produtos de higiene em quantidade e qualidade suficientes; e a visita dos familiares dos presos.
Nesta segunda-feira (11), as entidades peticionárias do caso de Araraquara junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos enviaram à Corte um informe que revela que nenhuma dessas medidas foi cumprida e que somente uma foi realizada parcialmente: a que determinava que o Estado brasileiro enviasse à Corte uma lista atualizada de todas as pessoas privadas de liberdade na Penitenciária de Araraquara, que indicasse com precisão os dados relativos à identidade do recluso, a data do seu ingresso, do eventual translado e liberação. O Estado deveria informar à Corte também possíveis alterações na população carcerária de Araraquara, para que as pessoas beneficiárias das medidas pudessem ser identificadas.
“De acordo com os dados e informações que coletamos desde a adoção das medidas até hoje, podemos dizer que somente uma vinha sendo cumprida parcialmente. A lista que o Estado enviou à Corte continha somente os nomes e os números de matrículas dos presos no dia da comunicação. Ele não informaram quais os presos que foram transferidos, com quais critérios e para onde foram. E isso é essencial quando se sabe que muitos estabelecimentos estão em condições iguais ou piores às de Araraquara”, explica o advogado Danilo Chammas, Secretário-Executivo da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos, uma das entidades peticionárias.
As informações colhidas pelas entidades vieram de visitas feitas à penitenciárias nos dias 24 de julho, 6 e 16 de agosto. Os últimos dados viriam de uma visita de fiscalização que deveria ter ocorrido na última sexta-feira (8), mas que foi impedida pela direção da unidade. O diretor Roberto Medina alegou que os integrantes das entidades não poderiam entrar porque seria realizada a revista da Tropa de Choque da PM. O objetivo era entrevistar funcionários e detentos para averiguar o real cumprimento das medidas urgentes. Justamente porque se tratada de uma vistoria para prestar contas à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a visita não poderia ter sido impedida.
“Falaram que era um dia impróprio; não gostaram de não termos avisado antes. Mas explicamos que não temos obrigação de avisar, já que, a partir de uma negociação entre o governo federal e o governo estadual de São Paulo, as organizações peticionárias não sofreriam embaraços para entrar na penitenciária mesmo sem aviso prévio. Eles disseram que era inviável estar lá dentro no momento da revista. Pedimos então para entrar assim que a operação da Tropa de Choque terminasse, e eles disseram que não”, conta Chammas.
Em nenhum momento, o diretor da penitenciária recebeu as entidades, tendo conversado com elas somente pelo interfone, quando alegou que as ordens eram da Coordenadoria Regional da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária). As organizações buscaram inclusive a intervenção da procuradora do Estado Mariângela Sarrubo, que é a pessoa designada pelo governador Cláudio Lembo para representar o Estado nos casos em andamento no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. A procuradora interveio, afirmando que não deveria haver embaraço para as entidades. Mesmo assim, depois de três horas de espera, as organizações não conseguiram entrar na penitenciária de Araraquara e foram recebidas somente por dois funcionários, que prestaram alguns esclarecimentos.
“Com muita má vontade, eles nos informaram o número de presos naquele momento – 769 no total, em regime fechado – e, para o nosso espanto, disseram que, há duas semanas, por ordem da SAP, as transferências haviam sido suspensas”, conta o secretário da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos. Desde o início de julho, a Secretaria de Administração Penitenciária havia se comprometido a transferir 100 presos de Araraquara por semana para outras unidades prisionais do Estado. A medida, no entanto, que agora está paralisada, já havia sido reconhecida como insuficiente para a Corte da OEA.
“Essa situação nos preocupa bastante, porque, se não nos deixaram entrar, é porque não há boa coisa lá dentro. Sabemos a ação costumeira da Tropa de Choque nessas revistas, quase nunca respeitadora dos direitos. São suposições, por enquanto, mas é necessário voltar lá pra verificar”, diz Chammas.
Abuso de autoridade Em reunião realizada nesta segunda (11), Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) decidiu entrar com representação criminal por abuso de autoridade contra o diretor do presídio de Araraquara, Roberto Medina, e com um pedido de abertura de sindicância administrativa na Secretaria de Administração Penitenciária. O Conselho afirma que a proibição da entrada no presídio de um membro efetivo do Condepe - órgão oficial do Estado – não poderia jamais ocorrer, já que integrantes do Condepe possuem prerrogativas previstas na Constituição do Estado e em legislação própria, que incluem acesso a qualquer estabelecimento prisional, da Febem ou delegacias de polícia. O conselheiro Paulo Sampaio, coordenador da Ação dos Cristãos para Abolição da Tortura (Acat), foi um dos que foi proibido de entrar na unidade de Araraquara na última sexta.
“Vamos pedir ao Ministério Público estadual que tome as providências cabíveis; faça uma investigação sobre o caso e peça a instauração de inquérito para a polícia civil. Ao mesmo tempo, vamos requisitar informações à Secretaria de Administração Penitenciária, para que apurem a conduta do diretor de Araraquara. O impedimento da entrada de um membro do Condepe pode agravar o caso junto à Corte da OEA”, afirma Ariel de Castro Alves, coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos.
O impedimento foi informado à Corte no relatório enviado para a sede do órgão, na Costa Rica, nesta segunda. As entidades pediram providências para que a atitude dos agentes do governo estadual não se repita. Os juízes podem determinar que o Estado não crie embaraços para a entrada das organizações peticionárias e que tome medidas para investigar e punir os embaraços recentes.
No dia 28 de setembro acontece a próxima audiência sobre a Penitenciária de Araraquara, em São José da Costa Rica, com representantes das organizações e Estado Brasileiro. Até lá, as entidades de defesa dos direitos humanos devem colher novas informações para apresentar aos juízes. Uma nova tentativa de visita a Araraquara deve acontecer nas próximas semanas.
A história de um juiz ameaçado de morte em Alagoas
O titular da única Vara de Execuções Penais de Alagoas sofre um duplo risco. Além de ser ameaçado de morte, Marcelo Tadeu Lemos de Oliveira pode ser afastado pelo Tribunal de Justiça. Em entrevista à Carta Maior, o juiz desabafa: “para muita gente, o juiz de execução penal bom é aquele que não trabalha”.
Marco Aurélio Weissheimer - Carta Maior http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=12821
Além das ameaças de morte que vem sofrendo, o juiz da Vara de Execuções Penais de Alagoas, Marcelo Tadeu Lemos de Oliveira, 43 anos, está sendo ameaçado também de afastamento do cargo que ocupa. Ele é o único juiz de Execuções Penais do Estado. E esta última ameaça parte da própria presidência do Tribunal de Justiça de Alagoas. Sem estrutura para trabalhar (a Vara de Execuções Penais tem apenas um funcionário), Marcelo Tadeu foi trabalhar dentro do presídio de segurança máxima Baldomero Cavalcante.
Chegando lá, deparou-se com um quadro que fere frontalmente a Lei de Execuções Penais. Pessoas presas há anos sem julgamento, sem qualquer registro na Vara de Execuções Penais, sem possibilidade de realizar trabalhos reeducativos dentro da cadeia, sem possibilidade de progressão de regime. Como o Estado não fornece condições de reeducação para os detentos, ele pretende equiparar todos os presos, como se estivessem trabalhando dentro do presídio, o que abre a possibilidade da redução de pena. Durante um recente seminário com estudantes universitários, disse que essa medida pode determinar a libertação de cerca de 80% dos detentos. A presidência do Tribunal de Justiça de Alagoas disse que, se ele fizer isso, será afastado do cargo.
Mas as ameaças que o juiz Marcelo Tadeu sofre não dizem respeito simplesmente ao trabalho que realiza em defesa dos direitos dos presos. Ele bateu de frente com a estrutura de poder de Alagoas, conhecida como uma das mais violentas do país. Denunciou o usineiro e deputado João Lyra, presidente do PTB em Alagoas e pai de Thereza Collor, como um dos autores intelectuais do assassinato do fiscal Silvio Carlos Luna Viana, coordenador-geral de Administração Tributária da Secretaria da Fazenda de Alagoas, no dia 28 de outubro de 1996. Quando foi morto com rajadas de metralhadora, o fiscal carregava em seu carro uma pasta com ofícios cobrando uma dívida milionária de usineiros alagoanos.
O caso foi tema de matéria de capa da revista Isto É, no dia 5 de julho deste ano. Passados dez anos deste caso, o juiz Marcelo Tadeu segue sofrendo ameaças de morte, recusa-se a andar com seguranças e não anda armado. Seus amigos temem pela sua vida.
Em entrevista à CARTA MAIOR, o juiz fala de seu trabalho solitário na Vara de Execuções Penais e critica o descaso com que setores do Judiciário tratam a Lei de Execuções Penais. “Infelizmente, para os setores conservadores, o juiz de execução penal bom é que aquele que não trabalha”.
CARTA MAIOR: Qual o trabalho que o senhor vem realizando junto à Vara de Execuções Penais e que vem provocando tanta polêmica em Alagoas?
MARCELO TADEU: Quando assumi a Vara há cerca de um ano, dei uma entrevista e disse que pretendia fazer uma revolução penal no Estado. Essa intenção, na verdade, representa apenas uma tentativa concreta de cumprir aquilo que está previsto na Lei de Execuções Penais. Bem, a partir daí, uma série de entraves foram colocados diante do meu trabalho. Minha política é colocar em primeiro lugar a vida humana e depois o processo. Adotei um programa de justiça itinerante e estou trabalhando dentro do presídio. A estrutura da Vara de Execuções Penais, a única do Estado, não existe. Possui apenas um funcionário. Ao chegar no presídio, encontrei pessoas presas há anos sem julgamento, presos provisórios convivendo junto com presos condenados e uma série de outras irregularidades. Procurei separar quem havia cometido delitos leves, como furtos, de quem está condenado por homicídio. Já peguei preso provisório com 14 anos de cadeia. Além disso, mais de 30% dos detentos sequer tinham processo na minha Vara. O processo deles nunca chegou à Vara de Execuções Penais. Um descalabro total.
Agora, estou estendendo o direito à redução de pena mesmo aqueles presos que nunca tenham trabalhado no presídio, uma vez que o Estado não está cumprindo seu dever de oferecer essas condições de trabalho. Com essa medida, muitos presos atingirão o requisito para ter acesso a vários benefícios, como indulto, livramento condicional, redução de pena e regime semi-aberto. Quem não trabalha dentro do presídio, não tem essas possibilidades.
CM: Um jornal de Maceió disse que essa medida poderia implicar a libertação de até 80% dos presos e que poderiam ser beneficiados inclusive detentos de alta periculosidade? Isso é verdade?
MT: Sobre os 80% é verdade, sim, mas não da maneira como o jornal colocou. Desde que assumi, o Estado de Alagoas não tem profissionais para efetuar o exame criminológico. Sem isso, não tenho como saber se este ou aquele detento é altamente perigoso ou não. Não há médicos psiquiatras nem psicólogos trabalhando no Estado, cuja opinião possa embasar tal diagnóstico. Como eu não sou um juiz pai de santo não tenho como saber.
CM: E o anúncio desta decisão provocou uma forte reação...
MT: Sim, há uma forte reação a este trabalho. Para os setores mais conservadores, o juiz de execução penal bom é aquele que não trabalha, pois aí o preso fica apodrecendo na cadeia. Não se discute no Brasil até que ponto o Judiciário contribui para a ocorrência de rebeliões nos presídios ao não trabalhar efetivamente pelo cumprimento da Lei de Execução Penal. Minhas idéias, de fato, não são as mais freqüentes no Judiciário. Eu acredito que o juiz não pode ficar refém do Executivo que não cumpre seus deveres quanto aos presos.
CM: E as ameaças de morte, partem de onde?
MT: Essas ameaças não são de hoje. Retornaram agora, com a volta, para Alagoas, de um preso que estava em São Paulo [o ex-tenente-coronel Manoel Francisco Cavalcante, apontado como o chefe da “gangue fardada de Alagoas”, uma espécie de esquadrão da morte que fornecia, entre outros serviços, o da pistolagem de aluguel]. Fui eu quem o prendeu pela primeira vez, em 1998, na investigação sobre a atuação da gangue fardada [acusada de envolvimento no assassinato do fiscal Silvio Viana]. Quando assumi a Vara de Execuções Penais, mataram um preso que tinha ligação com ele. Procurei mostrar a ele o perigo que corria aqui e acabou sendo transferido para São Paulo. É isso que tenho a dizer sobre isso. Não ando com seguranças e nunca vou andar. Tampouco ando armado. Nunca segurei um revólver em minha vida e não vou usar.
CM: É uma situação difícil. Qual o tipo de apoio que o senhor também para continuar esse trabalho?
MT: Tenho apoio da Associação dos Magistrados e de alguns setores da sociedade.
CM: E agora enfrenta essa ameaça de afastamento por parte da presidência do Tribunal de Justiça?
MT: É muito triste, mas estou pronto. Espero que o Tribunal de Justiça não cometa essa arbitrariedade, esse abuso de poder, pela presunção de decisões futuras. Não fui comunicado de nada ainda. Há um risco muito grande aí. Para tomar essa medida, o TJ teria que rasgar a Constituição, aviltando minhas prerrogativas. Afinal de contas, a Vara de Execuções Penais tem a função de defender o direito dos presos. É isso que estou tentando fazer, sem nenhuma estrutura, mas com muita disposição e compromisso ético. Estou procurando cumprir meu papel como juiz da Vara de Execuções Penais. Nesta função, o juiz precisa ter uma postura de extrema independência, com um preparo emocional muito forte. É muito difícil. Tem horas que dá uma angústia muito grande.
O que a sociedade precisa entender é que a não realização deste trabalho é um dos fatores causadores do aumento da violência no país. Aqui em Alagoas, como na maior parte do país, cerca de 99,9% da população carcerária é composta por pobres e miseráveis. A indiferença em relação a estas pessoas é gritante. Os setores mais conservadores da sociedade, egoisticamente, não querem saber disso. O discurso da lei e da ordem só vale para os pobres. Com esses é preciso endurecer. Vemos hoje uma situação de brutalidade enorme dentro dos presídios que vai resvalar na própria sociedade que, burramente, não quer enfrentar essa questão.
Assembléia aprova indenização a familiares de policiais mortos em SP
22/11/2006 - 10h17 - da Folha de S.Paulo / Folha Online http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u128484.shtml
A Assembléia Legislativa de São Paulo aprovou na terça-feira (21) em caráter de urgência, três projetos de indenização às famílias de policiais civis, policiais militares e agentes penitenciários mortos fora de serviço durante as ondas de ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) neste ano no Estado.
Os valores das indenizações, pleiteados por 38 famílias, são de R$ 100 mil a parentes de policiais civis e militares e R$ 50 mil aos familiares de agentes de segurança.
Os projetos foram enviados à Assembléia Legislativa pelo governador Cláudio Lembo (PFL) no dia 12 de setembro. Na ocasião, o governo do Estado informou que os valores foram calculados de acordo com o risco de cada função, considerado maior no caso dos policiais.
Devem ter direito à indenização filhos, cônjuge, companheiros, pais ou irmãos dos mortos.
População carcerária cresce 67% em 4 anos
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2703200716.htm
Entre 2002 e 2006, o número de pessoas presas passou de 239.345 para 401.236
Do total de presos no país, 114.423 (36%) estão concentrados em unidades do Estado de São Paulo; homens são mais de 90%
FELIPE SELIGMAN - DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A população carcerária brasileira aumentou 67,65% no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de acordo com dados do Infopen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) do Depen (Departamento Penitenciário Nacional).
Em 2002, último ano do governo Fernando Henrique Cardoso, o sistema carcerário abrigava 239.345 pessoas -entre homens e mulheres. Em dezembro de 2006, o número era de 401.236. Proporcionalmente, a diferença entre homens e mulheres praticamente não variou: Em 2002, 95,7% dos presos eram homens, enquanto em 2006, eram 94,25%. Os números, porém, podem não representar a realidade, segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública. Os dados são fornecidos pelos Estados e não existe uma metodologia padrão para a contabilidade. Também não se pode ter certeza da atualização dos dados.
A pesquisa começou a ser feita em 2000 e o crescimento até 2002 foi constante, mas o salto se deu a partir de 2003.
Segundo o diretor do Depen, Maurício Kuehne, o aumento pode ser visto de uma forma positiva. "É sinal de que o sistema judiciário funciona", disse.
Ele explica, entretanto, que o crescimento é "uma tendência já notada desde o início da década de 90". Isso ocorre, de acordo com Kuehne, porque o número de pessoas no sistema presidiário é maior do que o número de detentos que saem. "Registramos uma média de 3.000 excedentes a cada mês." Atualmente, em decorrência desse fluxo desproporcional, o sistema penitenciário abriga 103.433 presos a mais do que pode suportar. Além disso, de acordo com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, cerca de 550 mil mandados de prisão não são cumpridos.
Para o ministro da Justiça, Tarso Genro, esse é um "déficit histórico da segurança pública". Ele diz que os mandados deveriam "ser cumpridos pelas policias estaduais, por ordem das justiças estaduais". Entram no levantamento o número de presos que cumprem regime fechado, semi-aberto e aberto, além dos que estão internados, em tratamento ou presos em delegacias.
Segundo os dados de 2006, cerca de 36% (144.423) da população carcerária brasileira se encontra no Estado de São Paulo, sendo 93,25% (134.689) formada de homens e apenas 6,75% (9.734) de mulheres. Apesar de serem minoria no Estado, elas representam cerca de 42% de todas as mulheres presas no país. Em alguns regimes o número é maior: entre as mulheres que cumprem regime fechado, por exemplo, 57,9% estão em São Paulo.
Quanto aos homens, 35,6% (134.689) estão no Estado. Assim como as mulheres, eles são a maioria nos regimes fechado e semi-aberto no país: 43,75% e 38%, respectivamente.
A polícia dos pobres: violência policial em classes populares urbanas
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222002000100009
Ministério Público pede federalização do caso Operação Castelinho
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14362&editoria_id=5
Agora zen, Saulo diz ser vítima de perseguição
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1109200716.htm
Criminalista retrata prisões brasileiras e aponta desinteresse político
http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u351830.shtml