Estilingao

Um estilingue mirado nos pobres

O Estilingão1 não é apenas a nova ponte sobre o Rio Pinheiros que compõe o cartão-postal fabricado da replanificação de São Paulo. Ele é também o bastião da classe neoconservadora paulistana. Complexo viário onde um viaduto leva o nome de "José Bonifácio de Oliveira Sobrinho" -- o famigerado Boni da Rede Globo de Televisão -- e cuja ponte agracia Octavio Frias de Oliveira -- falecido "publisher" do jornal Folha de São Paulo -- o Estilingão é a ponte símbolo da união dos impérios da mídia na defesa dos interesses corporativos.

Este anel viário amarra uma série de empreendimentos e territórios em especulação na zona sudoeste da cidade: não apenas está localizado ao lado da sede da Rede Globo, do Hotel Hilton e do World Trade Center São Paulo, como conecta um mega-empreendimento conhecido como Shopping Cidade Jardim2 às avenidas Roberto Marinho3 e Engenheiro Luís Carlos Berrini, a primeira sendo uma rota de escape da elite para o Aeroporto de Congonhas e a segunda compõe o que é considerado como o quarto centro financeiro e empresarial da cidade.4

Se o projeto foi concebido nos fins da gestão petista da ex-prefeita Marta Suplicy, apenas tomou forma durante os governos Serra e Kassab: ponte estaida que lembra, pelos inúmeros cabos de sustentação ligados a uma gigante forquilha de concreto, um imenso estilingue armado para catapultar os habitantes pobres para a periferia.

Obra que também evoca um grande compasso sobre um território a ser dividido e administrado, a ponte foi construída pelo método "uma mão lava a outra", paga com a venda de CEPACS (Certificados de Potencial Adicional de Construção) que são, trocando em miúdos, permissões que a prefeitura dá para que as construtoras violem a lei de zoneamento e ergam edifícios mais altos do que o permitido. A venda de CEPACS nada mais é do que um investimento das próprias empreiteiras para "embelezar" e "melhorar o trânsito" numa região onde elas mesmas especulam, tanto é que o tráfego de caminhões e ônibus não será permitido por sobre a ponte, ou seja, é uma obra para os ricos.5

Sobre esse tipo de intervenção, Mike Davis afirma em seu livro "Planeta Favela" que

  É importante perceber que estamos lidando aqui com uma reorganização
  fundamental do espaço metropolitano, que envolve uma diminuição drástica
  das intersecções entre a vida dos ricos e a dos pobres [volta à cidade
  medieval ou mesmo "desincrustação"]6

De fato, todos esses empreendimentos representam a nova onda neoconservadora paulistana -- a mesma que compõs o remake da Marcha pela Família com Deus pela Liberdade encabeçado pela OAB-SP conhecido como "Cansei"7 -- e dos quais o Estilingão posa como troféu máximo desta política de exclusão: na festa de pré-inauguração,

  Os convidados puderam ver as várias nuances de cores na iluminação da
  ponte, com tons de azul, vermelho, laranja, verde e amarelo, entre
  outras cores. "Utilizamos a mesma tecnologia de outros grandes
  monumentos do mundo, como a torre Eiffel, em Paris", contou o presidente
  da Phillips, Paulo Zottolo.8

Não apenas Paulo Zottollo -- famoso pela frase "se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado"9 --, como Hebe Camargo, Ivete Sangalo e outros simpatizantes do "Cansei" e representantes da flatocracia compareceram à cerimônia, onde essa preocupação com os nuances de cores da iluminação da ponte constituíram uma agressão extrema aos/às habitantes das favelas do entorno, constantemente acossados pelo poder público e pela iniciativa privada.

Enquanto artistas e empresários, pessoas "sensíveis" e preocupadas com a "beleza" e com os tons de iluminação, os/as habitantes de baixa renda são "deixados morrer" pelo poder público e pela iniciativa privada. Apenas para citar alguns exemplos: aos/às moradores da favela do Jardim Panorama foi oferecido pelo Shopping Cidade Jardim um vale-despejo para que desapareçam da região10; a favela do Real Parque passou recentemente por um violento processo de despejo em que o trânsito e a mídia desempenharam papéis emblemáticos11; o Jardim Edite, onde só depois de muita luta que o despejo e a demolição de casas foram impedidos.12

Sabemos claramente que as questões do trânsito e da moradia estão intimamente ligadas13 e por isso não há como afirmar que a obra da ponte não tem relação nenhuma com a situação da moradia na região: a mera preferência por obras estetizantes e de auxílio a automóveis já atesta isso. Estamos falando, portanto, de uma apartação social promovida pela má distribuição do espaço e pela política de imobilidade urbana.

São Paulo soa a cada vez mais com uma Mesopotâmia versão neoclássica 14, uma próspera terra entre rios: não o Tigres e o Eufrates da Babilônia, mas o Pinheiros, o Tietê e o Tamanduateí delineando o perímetro do centro expandido que dia a dia se molda na tarefa de expulsar a miséria e o descontrole para os arrabaldes e cidades vizinhas. Todos os espaços vagos ou ocupados por pobres e miseráveis são então passíveis de reordenamento por um plano diretor -- ou deveríamos chamá-lo de "plano piloto"? -- estabelecido para criar15

  Enclaves e cidades periféricas temáticas e fortificadas,
  desentranhadas de suas próprias paisagens sociais mas integradas à
  cibercalifórnia da globalização a flutuar no éter digital [...] Neste
  "cativeiro dourado", acrescenta Jeremy Seabrook, os burgueses urbanos do
  Terceiro Mundo "deixam de ser cidadãos de seu próprio país e tornam-se
  patriotas da riqueza, nacionalistas de um nenhures dourado e
  fugídio".16

A cibercalifórnia paulistana não é um vale, mas uma várzea do silício, a várzea do rio Pinheiros cuja Golden Gate simboliza o reinado do automóvel, da especulação imobiliária, da exclusão social e da política da terra devastada. A "skyline" dessa região tende a se tornar uma paisagem desterritorializada, que poderia ser São Paulo mas também qualquer outro lugar. Prédios espelhados, alinhados como imensos monolitos fincandos na terra como lembretes da imposição da vontade insaciável do mercado e unidos por uma ponte que, ao invés de ligar lugares distintos, leva à mesmice das cidadelas fortificadas. Para que então uma ponte que vai do nada a lugar nenhum?

Notas

 

2 Shopping Cidade Jardim: novo mega complexo de luxo na zona sul de São Paulo localizado na margem esquerda do rio Pinheiros.

3 Vale lembrar que a Av. Patife Roberto Marinho foi palco de um ato de rebatismo popular.

4 O primeiro deles é o centro da cidade que, apesar de decadente, passa por um intenso processo de gentrificação e expulsão dos pobres. O segundo e o terceiro centro são, respectivamente, as avenidas Paulista e Faria Lima. Já o quarto centro financeiro se estende aproximadamente da Av. Berrini -- onde se encontram prédios de empresas multinacionais como a Microsoft até a Chácara Santo Antônio (Av. Alexandre Dumas e Américo Braziliense) e até o Centro Empresarial.

5 As motos são permitidas de trafegar na ponte, mas não esqueçamos que os motoboys são, em sua maioria, indispensáveis ao funcionamento do capitalismo paulistano, vide Motoboys: apêndices físicos do capitalismo informacional. As iniciativas do poder público para combater o caos no trânsito parecem se firmar no seguinte discurso: "pobres são feios, sujos e periogosos; portanto, se o trânsito da cidade fluir e for acessível aos pobres, teremos gente feia, suja e perigosa nos bairros nobres da cidade; para evitar isso, as medidas para a melhoria no trânsito da cidade devem priorizar os veículos automotores particulares". Assim, as obras de infra-estrutura urbana atendem preferencialmente carros (pontes, viadutos e túneis ao invés de corredores de ônibus e ciclovias). Tal política, contudo, tende a fazer água já a médio prazo uma vez que os estratos mais pobres da sociedade já estão adquirindo veículos, vide Vendas de veículos sobem e tornam abril melhor mês da história, diz Fenabrave (mas é claro que os/as mais pobres continuarão fora de tais estatísticas).

7 "Cansei": "Movimento" "cívico" "pelo direito dos brasileiros". Ótima sátira sobre esse "movimento" pode ser encontrada no blog Cansei! Tô cansadinho...

12 Ver, por exemplo, Noticias da Imprensa sobre o Jardim Edite, Liminar em ACP que impede a remoção da favela do Jardim Edite, Jardim Edite: Promotoria entra com ação contra remoção de moradores e "Quero ver quem vai me tirar", por exemplo. Só depois que o despejo foi barrado pela ação dos/as movimentos é que a prefeitura muda ligeiramente o seu discurso: Região de nova ponte terá conjuntos habitacionais, mesmo porque o Jardim Edite está numa Zona Especial de Interesse Social.

14 É realmente notável a adoção do estilo neoclássico nos novos edifícios paulistanos porque se trata de um acompanhamento arquitetônico da política de gentrificação do espaço urbano: o neoclássico é o estilo que faz com que qualquer cidade se assemelhe com uma variante pré-moldada da Paris pós-Haussmann. Talvez o exemplo mais famoso de edifício neoclássico seja o prédio da Daslu. Sobre o neoclássico na arquitetura paulistana, ver trechos de entrevista com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha. O primeiro surto de urbanização do Morumbi e arredores, dos anos 50 a fins de 90, foi caracterizado pela construção de mansões, pelo estádio do Morumbi e pelo Palácio dos Bandeirantes (e que consequentemente estão associados ao nascimento das favelas do Real Parque, do Jardim Panorama e do Paraisópolis, cujos moradores foram os construtores das mansões, do estádio e do palácio; sobre isso ver Real Parque: a história dos indesejados e Manifesto da Favela Real Parque). Posteriormente ao nascimento das mansões, bairros como o Portal do Morumbi e o Real Parque ganharam condomínios fechados. Hoje, o novo surto não se funda mais na construção de pequenos bunkers particulares e nem dos simples condomínios: ao invés de mansões construídas uma a uma e sob encomenda, a casa dos neocons é um apartamento dentro de um shopping murado, um feudo urbano pré-fabricado onde é possível morar, trabalhar e consumir. E, se os operários das obras de antes podiam construir suas próprias casas em terrenos disponíveis na própria região, hoje isso já não é mais possível.

15 A era Prestes Maia testemunhou a urbanização do centro da cidade; posteriormente, o centro expandido foi mais ou menos demarcado pela construção das marginais; no final dos anos 70, a elite segue o modelo norte-americano e busca no subúrbio a tranquilidade impossibilitada de existir num centro em decadência (leia-se: viver longe da pobreza). Agora que todos os suburbios estão apinhandos de pobres, o olhar da elite se volta para os locais disponíveis à terraplenagem do centro expandido. Como diz Paulo Mendes da Rocha , "É a contradição de que te falei. A classe chamada alta produz o próprio desastre. Ela abandonou a cidade e a população pobre ocupou-a. Você abandona uma cidade e funda outra, como Alphaville, porque teme a liberdade. A avenida São Luís, feita de habitações de alto padrão, não durou 15 anos. Mas talvez se alimente a desvalorização para, um dia, criar-se um plano de revitalização, favorecendo, de novo, a especulação. Essa não é uma boa política. Há grandes vazios na cidade."

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