Motoboys
Motoboys: apêndices físicos do capitalismo informacional
Texto publicado em http://centrovivo.org/node/203.
O capitalismo informacional acelerou o fluxo da vida nas cidades. Decisões são tomadas com maior agilidade, transações financeiras se realizam puramente em meio computacional, acordos são fechados via internet e o desenvolvimento de produtos e soluções trafega por redes de dados diretamente dos escritórios matrizes para o parque industrial. Tal aceleração implicou numa brutal mudança no modo de vidas das pessoas: hoje é possível fazer muito mais coisas num mesmo dia, sendo que tal possibilidade é explorada ao máximo pelo capital em seu afã de lucro.
Por outro lado, a dinâmica capitalista não se descolou do meio físico. Não apenas o fluxo de mercadorias é indispensável para o funcionamento do sistema (afinal, nem toda transação é puramente financeira), mas a formalidade e a burocracia existentes requerem ainda a trasferência física de documentos, uma vez que a certificação, a segurança e o controle nos meios digitais ainda não dispensaram a necessidade do papel e das formalidades físicas tradicionais como a assinatura, o protocolo e o cartório.
Mas, curiosamente, o sistema capitalista que acelera os movimentos nesse meio informacional é o mesmo que desacelera a mobilidade no meio físico: o capitalismo, pela sua constante necessidade de lucro, deve apostar sempre num mercado crescente, que nada mais significa do que em aumento do consumo e que consequentemente produz uma maior quantidade de objetos e descartes, sendo um caso exemplar a quantidade de automóveis circulando nas grandes cidades[1]. Há cada vez mais carros disputando o mesmo espaço, gerando uma enorme dificuldade de mobilidade na cidade e aumentando a cada vez mais o tempo de deslocamento. O sistema assim não apenas sugere que adotemos formas de deslocamento ou não-deslocamento mais sedentárias (ande de elevador, vá de carro, compre pela internet) como ainda tem como subproduto um enorme engarrafamento urbano.
Mas é o capital e não a situação do trânsito que determina a priori a temporalidade nas cidades: as pessoas são forçadas a se deslocar na cidade de qualquer modo porque não podem ficar paradas e atravancar o fluxo do capital. O deslocamento físico, porém, está cada vez mais inviabilizado.
É nessa tensão entre necessidade de aceleração virtual e um meio físico cada vez mais viscoso que surge, nas megacidades do mundo subdesenvolvido (ou mesmo do desenvolvido), o papel do motoboy: ele é o apêndice físico das redes de dados informacionais. Se o fluxo de mercadorias ainda é lento -- pois são transportadas de navio, carro e caminhões, sendo apenas uma pequena parcela trafegando por aviões ou motos --, o fluxo de documentos tenta se impor com uma velocidade compatível com as redes de dados, sejam porque se tratam de contratos -- que são assinados e quebrados com cada vez mais velocidade --, seja porque a transmissão de documentos é pautada hoje pela velocidade do mercado financeiro, que de todo capitalismo é o que opera na escala temporal de maior resolução: por uma questão de minutos ou segundos, transações são feitas ou desfeitas.
O motoboy é o tijolo básico da rede de transporte de documentos físicos. Ele é o envelope de dados e a menor unidade de transferência que trafega pelas brechas existentes das ruas que ainda não foram ocupadas pelo congestionamento. São os poucos elementos ainda fluidos de um fluxo de veículos porque, assim como o trem e o metrô, ainda conseguem se deslocar em meio a um trânsito praticamente cristalizado.
A existência de mensageiros é tão antiga quanto a história dos impérios. Já na aurora da civilização a capacidade de governar um reino estava diretamente relacionada à disponibilidade e ao tráfego de informações entre suas regiões. A forma de governo sobrerano pressupunha que o rei, o centro da tomada de decisões, tivesse o maior número possível de informações sobre seus súditos e seu território. De modo que um reino poderia ser tão extenso quanto sua rede capilar de obtenção de informação fosse eficiente em levar informações para o rei e propagar sua palavra aos quatro cantos.
A China e o Império Romano investiram tanto em mensageiros quanto em estradas que ligassem os domínios ao centro do império. Os mensageiros da época cumpriam suas distâncias a cavalo ou mesmo correndo -- é o caso por exemplo da lenda grega de Maratona, quando supostamente Fidípides foi correndo até de Maratona a Atenas em busca de socorro contra os Persas; quando os gregos saíram vitoriosos, Fidípides voltou novamente a Atenas, correndo sem parar cerca de 40km e morrendo logo após fornecer a mensagem de que os gregos foram vitoriosos. Desde então a tecnologia de envio de mensagens só se desenvolveu, tendo inclusive gerado métodos originais como os pombos-correio.
Os mensageiros solitários foram substituídos por uma cadeia de mensageiros e postos de mensagem ao longo das estradas, de modo que um mensageiro não tivesse que percorrer toda a distância por conta própria, mas que pudesse ser substituído por outros mensageiros ou que pudesse ser abastecido durante o caminho, eventualmente trocando seu cavalo por um animal descansado. Tal infra-estrutura deu origem, posteriormente, ao sistema de correios.
Já na industrialização surgem as formas modernas de comunicação, como o telégrafo (primeiramente óptico, depois eletromagnético), o rádio, o telefone e a comunicação via satélite, permitindo que as instâncias de poder e controle estendessem seus domínios a distâncias e locais anteriormente inimagináveis, de tal modo que hoje já sentimos esboços de um governo mundial que, se não é centralizado, é totalmente distribuído tanto em sua concentração de poder como em suas redes de comunicação.
Mesmo com todo esse aparato tecnológico para exercer o domínio e o controle, o capitalismo ainda exige que uma parcela da população mais pobre cumpra a função de mensageira para que seja possível vencer um ambiente cada vez mais engessado, cada vez mais próximo de uma morte térmica devido ao aumento da entropia socio-econômica e ambiental.
Na lógica capitalista, o fenômeno dos motoboys pode ser explicado também como uma inovação: assim como camelô, o motoboy de hoje é uma versão amadurecida do trabalhador precarizado do setor de serviços. Não mais montados a cavalo, como antigamente, mas montados em cavalos motorizados, os mensageiros de hoje ainda são explorados até a exaustão: os motoboys são os mensageiros que arriscam a vida para a entrega de documentos[2]. O capitalismo informacional envia mensalmente dezenas de motoboys para a lista de óbitos, pessoas que põem suas vidas em risco para entregar documentos em troca de um salário miserável. Os/as motoristas de automóveis que tanto criticam a selvageria com a qual os motoqueiros se desviam dos carros-obstáculos são os mesmos/as que utilizam o serviço de entrega rápida quando tem um prazo urgente. Se o courier dos grandes impérios operava distâncias entre cidades e províncias, hoje o entregador de documentos opera dentro da própria metrópole, ela mesma sendo um local imenso, intransitável e cheia de perigos[3].
Motoboys não existem e todas as grandes cidades do mundo e nem nossa análise é válida para todos os centros urbanos. Centremos então nossa antenção em São Paulo, a cidade que primeiro vem à cabeça quando citamos essa dinâmica e que melhor representa nossa realidade local (talvez por aqui estarmos). Pois bem, os anos 80 e 90 presenciaram o auge dos chamados office-boys, os pedestres entregadores de encomenda e solucionadores de burocracias simples (o office-boy não apenas entrega e retira documentos, ele pode efetuar operações financeiras de pagamento e recebimento, por exemplo). O office-boy de ontem é o motoboy de hoje, com a diferença que, além de utilizarem um veículo automotor próprio, os motoboys são muito mais organizados socialmente, sendo que para esse fato encontramos dois motivos imediatos:
- Ao contrário do office-boy, que era empregado da mesma firma para a qual prestava o serviço, o motoboy é em grande parte terceirizado: existem empresas de especializadas na entrega e retirada de documentos que possuem dezenas de motoboys como funcionários. Mesmo as grandes empresas que ainda tem motoqueiros nos seus quadros ainda proporciona um maior encontro entre os mesmos, o que faz com que dessa convivência comum surja a sua organização de classe.
- A ferocidade do ambiente no qual o motoboy trabalha é muito maior do que o office-boy (que apenas andava a pé, de ônibus, trem ou metrô): a quantidade de acidentes, o conhecimento desse perigo e beligerância que mantém com os veículos de quatro rodas fazem com que os motoboys tenham muita solidariedade entre si, se ajudando mutuamente em caso de acidentes e falhas nos veículos.
Os motoboys ganham muito pouco para a carga horária que enfrentam, para a estafa do dia-a-dia e para o risco que correm. Muitas vezes trabalham em turno dobrado (empresa de entrega durante o dia, disk pizza durante a noite), chegando às vezes tendo que atuar como aviões (entregadores de entorpecentes) junto ao narcotráfico para o complemento da sua renda. O motoboy, aliás, é um tipo de novo operário do século XXI, um operador de equipamento de locomoção das redes de informação. É um operário que ao mesmo tempo pode fazer fitas para agilizar a correria ou ao menos ter bons contatos entre a bandidagem.
Por tudo isso e por ocupar um nicho importantíssimo para o andamento do capitalismo (dizem que a cidade pára sem eles), o motoboy possui por conseguinte uma maior condição reivindicatória e é um ator chave na guerra urbana. Aliando isso à sua capacidade de organização, essa classe tem condições potenciais para renovar o sindicalismo, o que apesar disso não a faz imune às investigas do sindicalismo pelego (como já vem acontecendo), mas também não impede que esse movimento tenha desdobramentos interessantes.
Testemunhar a dinâmica dos motoboys, portanto, constitui uma forma interessantíssima de acompanhar potenciais lutas sociais que podem se efetivar dentro da cidade.
[1] Máximas e Mínimas 749 - Engarrafamento em SP - Quem é o culpado? - http://conversa-afiada.ig.com.br/materias/465501-466000/465957/465957_1.html / Também em http://apocalipsemotorizado.net/2007/11/22/o-fim-ja-comecou/
[2] Motos, trânsito, status e mortes - http://panoptico.wordpress.com/2007/08/21/motos-transito-status-e-mortes/
[3] Motoboys: os mensageiros da pressa - http://www.healthcarenetwork.it/admin/FileProxy.asp?FileName=ArchivioFile%5CTemas+diversos%5CMotociclistas+profissionais%5Cmotoboys_texto_final.doc