TransitoMidiaMoradia

Trânsito, mídia e movimentos de moradia

Texto publicado em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/12/406520.shtml e em http://centrovivo.org/node/126.

Na cidade de São Paulo, qualquer fato social relevante tem sido desprezado pela mídia quando esta pode tratá-lo como sendo apenas um obstáculo a ser vencido pelo trânsito de automóveis. Qualquer causa de luta social é tratada pela polícia como um atentado ao direito de ir e vir se ela atrapalhar de algum modo o tráfego de veículos e qualquer conteúdo político é esvaziado ao serem tidos por simples problema de congestionamento. É assim também que, em dias de passeatas, o policial militar se transforma numa versão hardcore de um guarda de trânsito, pouco preocupado se terá ou não que espancar alguém para que as vias públicas permaneçam livres de pedestres e cheias de veículos engarrafados. Não apenas a morosidade social, geradora em dias úteis de cerca de 100km de engarrafamento, ganha destaque na mídia como sua visibilidade suplanta qualquer outro fato social de média e grande escala, efêmero ou não.

O engarrafamento de automóveis é o símbolo da inação das pessoas, mais preocupadas com a manutenção dos seus pequenos feudos móveis do que com o problema coletivo do transporte, ao passo que outros fatos sociais em geral implicam em ações coletivas e conscientes. Ou seja, a opinião pública acaba se preocupando mais com sua inação do que com sua ação, uma clara característica do conservadorismo vigente. Quando, no entanto, o movimento é dos sem-teto e a luta é pela moradia, tal descaso, desprezo e intolerância com ações em prol do direito pela moradia apresentam certas nuances interessantes de serem explorados pelos movimentos sociais urbanos.

Na mídia paulistana, movimentos de moradia apenas tem destaque na ocasião de despejos, desocupações e reintegrassões de posse. Mesmo assim, estes aparecem apenas como problemas de trânsito, quando o efetivo policial e o aparato estatal bloqueiam as ruas ou quando o movimento decide ocupá-las. Na seção de política ou economia, no entanto, eles raramente aparecem.

Vejamos algumas manchetes, como por exemplo as relacionadas ao despejo ocorrido na favela do Real Parque em São Paulo em dezembro de 2007[1]:

  Reintegração de posse pára as marginais do Pinheiros e do Tietê
  http://www.estadao.com.br/cidades/not_cid93990,0.htm

  Reintegração de posse atrasa por causa do trânsito
  http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI2144318-EI998,00.html

  Motoristas de SP enfrentam lentidão nas marginais Tietê e Pinheiros
  http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u353884.shtml

Relegar os movimentos de moradia à seção de trânsito é uma forma da mídia desmerecer movimentos sociais legítimos, afinal, poucas são as pessoas que dispõem de morada própria. É elevar a saúde do trânsito na cidade a um patamar mais alto do que a importância de uma moradia digna na cidade.

Tal sentença midiática -- endossada pela maioria dos/as motoristas e passageiros de automóveis presos em engarrafamentos provocados pelos despejos -- esconde, no entanto, uma grande contradição do próprio discurso presente nas entrelinhas do texto jornalístico.

Podemos afirmar com segurança que ninguém gosta dos recordes de congestionamentos dia a dia conquistados por uma grande parte da população da cidade. Por outro lado, também com uma certa margem de segurança podemos dizer que uma boa fração da população paulistana --- oriunda especialmente das classes mais abastadas --- é contra uma reforma urbana que distribua habitações e terrenos improdutivos para movimentos como os dos/as sem-teto.

Ora, não gostar de congestionamento e ao mesmo tempo ser contra uma reforma habitacional na cidade é o mesmo que afirmar que o trânsito em São Paulo não é gerado pelo efeito conhecido como "cidade pendular", causado pelo fato de que milhões de pessoas moram nas periferias e diariamente precisam atravessar a cidade para irem das suas casas para seus trabalhos pela manhã e do trabalho para casa durante a noite.

O problema habitacional é, portanto, uma questão fundamental para a geração do trânsito, ao lado do sucateamento do sistema ferroviário, do aumento ridículamente pequeno da malha metroviária ao longo dos anos, da falta de investimentos na melhoria e aumento da frota de ônibus, sem mencionar é claro a questão do acesso aos meios de transporte e ao incentivo do uso de sistemas alternativos, como por exemplo a bicicleta ou o barco. Na verdade, a reforma urbana é a principal questão quando se discute trânsito na cidade, pois é a causa da necessidade da maioria das locomoções realizadas no município: mora-se na periferia e trabalha-se no centro. Todas as demais questões (sucateamento, falta de investimentos e políticas públicas) serão apenas paliativas se ignorarem a má distribuição espacial de domicílios na cidade.

A mídia corporativa e os segmentos da sociedade com acesso ao automóvel negam, portanto, que a questão habitacional é a grande geradora do trânsito na cidade. Negam porque não querem dividir o centro expandido de São Paulo com os pobres, dos quais tanto dependem para realização dos serviços indispensáveis à existência da metrópole. Tal negação, no entanto, acaba por gerar um trânsito absurdo que apenas a nata da elite -- aquela que pode ir e vir de helicóptero -- pode fugir.

Assim, mesmo que a mídia condene os movimentos de luta por moradia (sejam eles espontâneos ou não) a figurarem na seção de trânsito, por acidente ela acaba por colocar a questão do trânsito no lugar certo, que é da reforma habitacional.

A mídia, portanto, não tem escapatória ao tratar esse tipo de pauta: ou coloca a moradia como questão política e econômica em seus cadernos de destaque ou coloca a questão do trânsito nas cidades como consequência da moradia -- seja pela luta por moradia, seja pela sua ausência. A mídia e a opinião pública não tem escapatória ao tratar de ambas as questões porque estão intimamente ligadas: trânsito, prejuízos financeiros a ele relacionados, moradia, qualidade de vida e justiça social.

Essa inter-relação -- que na mídia tem apenas um aspecto esquizofrênico -- cria, portanto, inúmeras possibilidades para movimentos como o do Passe Livre trabalharem conjuntamente com os/as Sem-Teto e com participantes do Fórum Centro Vivo por uma agenda de lutas conjuntas.

Termino aqui com um lembrete para refrescar a memória de muita gente que é contra a reforma agrária e urbana: você acha que não é sem-teto só porque consegue pagar aluguel?

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Nota: a Real Parque é um exemplo ainda mais emblemático de enclave, pois está situada perto:

  • De uma ponte em construção (símbolo do trânsito).
  • Da Rede Globo (símbolo da mídia), cujo prédio pode ser visto, na foto[2], atrás da ponte e juntamente com sua nova antena de transmissão.
  • Do empreendimento "Shopping Cidade Jardim"[3], este último contando com financiamento do BNDES[4] e símbolo do despejo de moradores/as pobres para o estabelecimento de prédios de luxo (símbolo da gentrificação).

É portanto uma favela incrustada numa zona de interesses confluentes, resumidos pelas duas fotos([2] e [5]): mídia, trânsito e movimentos sociais geograficamente muito próximos uns dos outros.

[1] http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/12/405655.shtml e http://www.midiaindependente.org/es/blue/2007/12/405608.shtml

[2]

[3] http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2006/05/354316.shtml

[4] http://www.bndes.gov.br/noticias/2007/not129_07.asp

[5]